AS FESTAS DO SENHOR NO ULTIMO DOMINGO DE AGOSTO
PATRIMONIO IMATERIAL DA VILA
Santíssimo.
Dentre
as pessoas mais idosas, muitas se recordam das tradicionais «Festas do Senhor»
na vila de Castanheira de Pera. Anualmente sempre no último domingo de Agosto.
Missa solene concelebrada por três sacerdotes, sermão do púlpito da Igreja,
procissão solene dentro da vila. Filarmónica Castanheirense. «Zés Pereiras». À
noite arraial popular (folclore, variedades, fogo preso). A festa era
patrocinada pelos «Irmãos do Santíssimo». Aquando do peditório todos
contribuíam, pelo menos com um alqueire de milho em género ou valor
equivalente. Em troca recebia-se dois foguetes. Sucede porém, que há cerca de
três dezenas de anos, as Festas do Senhor interromperam-se. Motivação diversa,
cansaço de mordomos, alguma sobreposição das festas concelhias do 4 de Julho, a
Feira da Juventude em Agosto, a inércia da comunidade cristã da vila. Regressaram
porém, em 2016 e anunciam-se para 2018. Vamos indagar do enquadramento jurídico
da pausa na perspectiva do direito canónico.
Direito Canónico.
Como
qualquer pessoa (singular ou colectiva) também a Igreja Católica pode ser
proprietária de coisas civis, casas, terrenos, vinhas, olivais, pinhais,
geralmente provindos de doações pias. Estes bens temporais regem-se pelo Código
Civil (CC) do respectivo Estado,
(Cân. 197, Cân. 1259). Porém, já no tocante às coisas sagradas (templos e actos
litúrgicos) há institutos (como o costume e a prescrição) com prazos privilegiados no Código de
Direito Canónico (CDC). Já era assim
no CDC 1917 e continua a ser assim
no CDC 1983 (Cân. 26, Cân. 1270).
Com uma diferença quantitativa: 40 anos no Código antigo e 30 anos no Código
actual. O Código Civil é no Direito Canónico de aplicação subsidiária.
Quarenta anos.
Não indagámos ao certo do início das «Festas do Senhor» na vila de Castanheira
de Pera. Todavia, já na edição do jornal «O Castanheirense» de 15 de Setembro
de 1937 se refere à Festa anual do
«Santíssimo», realizada no «dia 29 do mês findo», como sendo «uma das melhores
festas da terra». A este documento junta-se o depoimento das pessoas mais
idosas da região, testemunhando que as «Festas do Senhor», (missa, procissão e
arraial nocturno), sempre se realizaram na vila no último domingo de Agosto de
cada ano. Reiteradamente, durante os anos trinta, quarenta, cinquenta, sessenta
e setenta do século passado. Significa isto que perfazendo, nesse âmbito
temporal, «quarenta anos contínuos e
completos», a Comunidade Cristã da vila adquiriu, quer pela via do costume quer pela via da prescrição aquisitiva (usucapião), o direito ao último domingo de Agosto
de cada ano para, dentro dele, celebrar as suas «Festas do Santíssimo». Consequentemente,
uma vez adquirida a titularidade da
data, com força equivalente a lei, as «Festas do Senhor» podem deixar de se
realizar durante 10, 20, 30 ou mais anos, sem que daí resulte a perda do
direito a retomá-las, posteriormente, na mesma data de calendário. E isto é
assim porque, além do mais, a titularidade não caduca. E mesmo não se
realizando (elemento objectivo), a comunidade cristã da vila mantém sempre a
convicção (elemento subjectivo) de que esta é a data das «Festas do Senhor». E
não aprecia que esta sua convicção seja perturbada.
Trinta anos.
Mas
prudência, porque isto pode deixar
de ser assim em duas situações. 1) Ou perante um diploma diocesano em sentido
diferente. 2) Ou se, entretanto, uma qualquer outra Comunidade Cristã da Paróquia
tiver de boa-fé ocupado a data (do ultimo domingo de Agosto), para nela
celebrar a sua Festa Religiosa (missa e procissão) e nela assim se mantiver
durante «trinta anos contínuos e
completos», (Cânones 26, 27, 198, 201 § 1º, 1270 CDC). Sendo que o relevante aqui não é o ano em que a Festa do
Senhor para, mas o ano em que uma outra Comunidade Cristã começa, começo este
que só se conta a partir de 27 de Novembro de 1983, data da entrada em vigor do
novo CDC, (Art.º 297º nº1 CC).
Devendo ainda esta Comunidade Cristã manter a sua festa contínua, isto é, sem interrupções, porque as interrupções
inutilizam o tempo decorrido, começando o prazo a contar de novo (Art.º 326º
CC).
Ponderação.
As
festas religiosas são pontos sensíveis nas Comunidades. Deixam transparência
documental (actas, licenças religiosas e administrativas, programas, recibos,
jornais). Em caso de dúvida temporal seria uma questão a ver, analisar,
conferir. E, tudo ponderado, de duas, uma: ou uma outra Comunidade Cristã da
Paróquia preenche uma série de «trinta
anos contínuos e completos» e desta feita adquire o direito ao último
domingo de Agosto, quer pela via do costume,
quer pela via da prescrição
aquisitiva (usucapião) e a vila cede a data; ou tais pressupostos não se
verificam e então o direito à data permanece na titularidade da Comunidade
Cristã da vila. E o tempo em que outras Comunidades Cristãs da Paróquia tenham,
porventura, andado na «posse» da data, tem-se como um tempo de expressão da sua
Fé, (consenso, harmonia, tolerância), expresso ou tácito conforme o que das
actas conste, contudo sem potencialidade para atingir o direito. No demais há
que ter em conta as «Orientações
pastorais sobre festas religiosas, Diocese de Coimbra», (1). Mormente quanto à prestação de contas e
entrega de saldos. Saldos obtidos sob jurisdição canónica não devem ter destino
civil, (Cân. 1261º § 2º CDC).
Património imaterial.
Situada no tempo, uma data de
calendário é uma «coisa». Visto que se diz coisa «tudo aquilo que pode ser
objecto de relações jurídicas», (Art.º 202º CC). Decerto coisa incorpórea,
imaterial (Art.º 1.302º CC). Mas adequada para dentro dela materializar
determinados actos. Por isso todos os dias se negoceiam estas «coisas», (data
da escritura, data do casamento, data do congresso, data das eleições, data do
jogo, data da festa, data da viagem e por aí adiante). Existem datas que se esgotam
num acto e datas que se repetem por tempo indeterminado. Dentre estas os
feriados nacionais, regionais e municipais. Aqui as respectivas comunidades têm
estas datas como «coisa» sua, algo do seu património
imaterial (histórico, politico, religioso). O mesmo principio valendo para
os tradicionais dias festivos em templos das paróquias de cidades, vilas ou
aldeias. Em que as comunidades cristãs locais participam e vivem activamente o
dia da «sua» festa, a festa do «seu» padroeiro, a festa do «seu» lugar. «Coisas» afinal do seu património imaterial!
Francisco H
Neves
(1)
http://www.diocesedecoimbra.pt/documentacao/legislacao-diocesana/orientacoes-pastorais-sobre-festas-religiosas:914
Jornal «O RIBEIRA DE PERA» edição impressa de 28/2/2018