«Selada de Pera ➢ Ribeira de Pera ➢ Castanheira de Pera» documental
Versão Grande Enciclopédia / Horizontes da Memória 2001 incompatível
A| Selada de Pera ➢ Ribeira de Pera
A
classificação de uma massa de água como rio ou ribeira depende da autoridade
administrativa. A ribeira de Pera (dantes rio Pera) nasce na Serra da Lousã,
freguesia do Coentral, mais precisamente na Selada de Pera (Porto Ervideiro),
próximo do Santo António da Neve e desagua no rio Zêzere, junto da ponte
filipina, em Pedrógão Grande. Tem como afluentes na margem direita:
ribeira de Cavalete, ribeiro Sapateiro, ribeiro do Amial, ribeiro do Fontão,
ribeiro do Carregal (Cimeiro e Fundeiro), ribeiro do Porto-Figueiró (Balsa,
Sarzedas, Vale das Mós). E na margem esquerda: ribeira das Quelhas, ribeiro das
Botelhas, ribeiro do Gestosa (Cimeira, Fundeira, Torno). «Selada» e «porto» são topográficos.
Selada resulta do étimo latino sela + ada que significa
concavidade oblonga numa montanha, (montanha com aspeto de sela). «Porto»
significa passagem entre duas elevações. «Pera» vem do étimo latino petra
(petra, pedra, pera) e «Ervideiro» tem a ver com vegetação. O lugar da
nascente (Selada de Pera) deu o nome à ribeira de Pera. Com efeito,
1| Desde
1751 que o «Dicionário Geográfico ou Notícia Histórica» do P. Luiz
Cardoso, Tomo II /663 regista: «COENTRAL
- Lugar...Bispado de Coimbra…termo de Pedrógão Grande…Orago N.S. Nazaré…Passa
por aqui o rio Pera». Link 1
2| Em
1762, no tomo 1º/135 do «Mapa de Portugal Antigo e Moderno», o P. João Baptista
de Castro recordava: «PERA - É rio menor que o Zêzere onde se embebe;
cerca a vila de Pedrógão. Deste rio se lembra Camões. (Cam.
12, eft 2). 2 (Nota - Canção na «Monografia do concelho»).
3| No
seguimento do terramoto de 1755 o 1º ministro de D. José (Marquês de Pombal)
ordenou um inquérito a todas as paróquias do continente, através dos bispos
diocesanos. Daí resultaram as Memórias Paroquiais de 1758. No
tocante ao Coentral o relatório é sumário. Ainda assim dele resulta que:
«COENTRAL - É aldeia e paróquia do termo de Pedrógão Grande…Igreja
Matriz…Senhora da Nazaré…cabido de Coimbra. É regada pelo rio
Pera».3 Quanto à Paróquia de S. Domingos da Castanheira o
relatório do P. Cura Luís Thomaz Denis é circunstanciado e preciso:
«CASTANHEIRA -
Quanto à ribeira que há nesta freguesia: se chama ribeira
de Pera que nasce onde chamam a Selada de Pera, de onde entendo tomou seu
nome». «Corre dos Coentrais e passando junto dos lugares de Pera,
Bolo, Palheira, Sapateira, Castanheira, Moita, Mosteiro se junta com o rio
Zêzere onde fenece».4 (Nota –
Texto integral na «Monografia do Concelho»).
4| Em 1874, no volume II/314 do «Portugal Antigo e
Moderno», o historiador Pinho Leal confirma: «COENTRAL -
Freguesia…concelho de Pedrógão Grande…Orago N.S. Nazaré…Cabido da Sé de
Coimbra…Passa aqui o Rio Pera». 5
5| Em
1878 no «Dicionário Corográfico do Reino de Portugal» (pag.137) o P. Agostinho
Rodrigues de Andrade, estando em Pedrógão anota: «PEDRÓGÃO GRANDE…
vila… situada na margem direita do Zêzere e junto da foz da ribeira de
Pera. Fica-lhe ao norte a serra do Coentral».6
6| Mais
recentemente (1936), o vol. V/566 do «Dicionário Corográfico de Portugal
Continental e Insular», da autoria de Américo Costa, regista: «COENTRAL
- Povoação e freguesia de N.S. da Nazaré…concelho de Castanheira de Pera. Está
situada na aba da serra da Lousã, nos caminhos para…lugar do Santo António da
Neve e próximo da nascente Ribeira de Pera, afluente do rio Zêzere».
Resumindo: Nas «Memória Paroquiais» o P. Luis Thomaz Denis é claro: “E quanto a
ribeira que há nesta freguesia: se chama ribeira de Pera
que nasce onde chamam a Selada de Pera, de onde entendo tomou seu nome”. (Sendo
que este «entendo» significa que a resposta é ponderada). «…corre dos
Coentrais…Se junta com o rio Zêzere onde fenece». Também na
mesma ocasião, o pároco do Coentral testemunha que a aldeia «é regada
pelo rio Pera». Já antes (1751) o P. Luis Cardoso,
descrevendo o Coentral registara: «Passa por aqui o rio Pera». E 123
anos depois (em 1874) Pinho Leal, atualizando o Coentral, confirma «Passa
por aqui o rio Pera». Mais
recentemente (1936) Américo Costa especifica a nascente da
Ribeira de Pera na serra da Lousã, próximo do Santo António da Neve e ser
afluente do rio Zêzere. Neste âmbito temporal de 185 anos (1751 – 1936) não é
conhecido outro sentido. Então, conjugando estes elementos, podemos concluir
que, quando esta massa de água desce do território da Paróquia de N. S. da
Nazaré do Coentral para entrar o território da Paróquia de São Domingos da
Castanheira, já leva consigo, firme e consolidada, a sua denominação: Ribeira
de Pera até ao rio Zêzere).
1. Fonte e nascente. De reverendo autor transcrevemos: «É certo que, em
alguns casos, a nascente pode também ser fonte; mas são sempre coisas
distintas, embora simultâneas ou juntas. Normalmente, a fonte está distanciada
da nascente (e por vezes muito), como acontece em regra, v.g., com as fontes
(fontenários) das vilas e cidades; as suas nascentes, em geral, estão a
quilómetros de distância». «Nascente é o ponto do solo onde principia uma
corrente de água («caput aquae»).
2. Na
carta militar há um troço da ribeira de Pera identificado como ribeira do
Coentral Grande. Também sinalizadas
altitudes vulgarmente tidas como serra do Trevim, serra da Safra, serra da
Gestosa, serra da Ortiga, oficial e globalmente integrantes da serra da Lousã. Pois que assim seja. Isto é relevante para fins operacionais, visto que quando diminui a extensão de
uma ideia aumenta a sua compreensão. Sem confundir classificação (oficial,
global), com classificativas (oficiosas, parcelares).
3.
Ainda Coentral. Criada a paróquia foi dotada de um livro de registo de
batizados, casamentos e óbitos «desta freguesia de N.S. da Nazaré dos
Coentrais novamente erecta neste ano de 1691». O advérbio novamente
significa aqui de novo. O Prof. Marcello Caetano, na sua História do Direito
Português (Sec. XII – XVI), (Verbo), Cap. 5/93, a propósito dos abusos da
nobreza na criação de novas honras (terras imunes) refere: «… queixam-se os
povos de que são feitas honras novamente (isto é, honras novas, pois o
adverbio «novamente» queria dizer então, «de novo», como coisa nova, pela
primeira vez». Notar que este
«novamente» no Coentral se refere à freguesia e não ao templo.
B| Ribeira de Pera ➢ Castanheira de Pera
A ribeira de
Pera, vinda do Coentral, preencheu com o seu nome todo este vale e foi durante
séculos a grande referência regional deste espaço na diocese, nos municípios,
nos tribunais. Recuperemos algumas dessas menções.
1| Na diocese. A Paróquia de São Domingos da
Castanheira foi criada em 1502 mediante três atos
notariais. 1º|Em 15/11/1502 oito (8) moradores foram a Coimbra (Sé)
assinar com os responsáveis diocesanos o contrato promessa da edificação da
Igreja de S. Domingos com as condições e cláusulas inerentes à vida da nova
paróquia. Perante tabelião e notário público de Coimbra que lavrou a
escritura. 2º| Em 4/12/1502, à porta da Ermida de São Domingos
na Castanheira, reuniram-se moradores de todos os lugares da futura paróquia
para ratificar o que fora acordado em Coimbra. Moradores do Coentral (5), Pera
Cimeira (5), Pera Fundeira (4), Amial (2), Castanheira (11), Troviscal (2),
Fontão (1), Carregal Cimeiro (1), Carregal Fundeiro (1), Moita (2), Gestosa
(4), Sarzedas (2). O tabelião e notário público de Pedrógão Grande
lavrou o documento. 3º| Por fim em 8/12/1502 dois
moradores foram a Coimbra (Sé) apresentar às dignidades do cabido o documento
ratificação, na presença do tabelião e notário público de Coimbra que lavrou
instrumento em conformidade. Nestes três documentos sempre estes moradores foram
tidos - seis vezes no primeiro, uma no segundo e três no terceiro - como moradores
na Ribeira de Pera.
Ou seja, moradores em: Coentral (da
Ribeira de Pera), Pera (da Ribeira de Pera), Castanheira (da Ribeira de
Pera), Moita (da Ribeira de Pera) e assim por diante. (Nota – Os
três documentos estão transcritos na «Monografia do concelho»).
Ainda na diocese e no tomo III/199 da
«Corografia Portuguesa e Topográfica» (1712), o P. António Carvalho da Costa,
estando em Pedrógão Grande descreve: «Vila… Cabido de Coimbra…Rios
Zêzere e Pera…Termo…com 400 vizinhos que se dividem por estas freguesias: N.
Senhora da Graça, Santa Catarina de Vila Facaia, S. Domingos da Ribeira
de Pera».7
2| Nos municípios. Em 1874, numa representação
ao parlamento em defesa do traçado da linha férrea da Beira Alta, a Câmara da
Lousã invoca, além do mais, «as muitas e florescentes fábricas de lanifícios
da Ribeira de Pera, concelho de Pedrógão Grande». (DG
nº 62 de 19/3/1874, pág. 414).8 E
em 1882, numa representação aos Dignos pares do reino, acerca da construção do
caminho de ferro de Arganil, a Câmara de Condeixa invocava as «excelentes
fábricas de lanifícios da Castanheira e da Ribeira de
Pera» em defesa do seu traçado. (DG. nº 138 de 22/6/1882, pág.
1528). 8
3| Nos tribunais. Anúncios. Num processo
instaurado na comarca de Penacova, correm éditos de 30 dias citando, entre
outros, os credores da Ribeira de Pera, comarca de Pedrógão
Grande, para deduzirem, querendo, o seu direito. (DG nº 273 de 2/12/1889, pág.
2788). 8 E noutro processo pendente na
comarca de Arganil correm éditos de 30 dias citando credores certos e incertos
para deduzirem os seus direitos, entre eles um certo da Moita da
Ribeira de Pera, comarca de Figueiró dos Vinhos. (DG
nº 78 de 6/4/1905, pág. 1170).8
4| «Castanheira do Pedrógão». Não obstante esta
grande notoriedade da ribeira de Pera o certo é que todo este espaço pertencia
ao concelho de Pedrógão Grande (1206-1914). E daí que a Castanheira
fosse tida e havida como a «Castanheira do Pedrógão». Isto mesmo documenta o
volume IV/1480 do mencionado «Dicionário Corográfico de Portugal Continental e
Insular» (1934) de Américo Costa, logo ao abrir o tópico: «CASTANHEIRA
DE PERA (ou Castanheira de Pedrógão por ter pertencido ao concelho de Pedrógão
Grande)». Este possessivo incomodava os liberais e industriais
castanheirenses, nomeadamente António Alves Bebiano, (1831-1911), futuro
visconde. Eles não queriam ser «Castanheira do Pedrógão», eles queriam ser
Castanheira da sua ribeira, «Castanheira (da Ribeira) de Pera» como
vinha desde 1502. Tanto mais que era da ribeira que colhiam a força motriz da
florescente indústria. Foi então que, convertendo «Castanheira (da Ribeira) de
Pera» em «Castanheira de Pera» passaram a identificar-se como industriais de
Castanheira de Pera. Suprimindo-se o termo «ribeira» que fica subentendido
(elipse gramatical) como nos demais hidrónimos).
Outros hidrónimos: Arcos de Valdevez (rio Vez), Ponte
de Lima (rio Lima), Ponte de Sor (rio Sor), São Pedro do Sul (rio Sul), Sever do Vouga (rio Vouga),
Ferreira do Zêzere (rio Zêzere), Castanheira de Pera (rio Pera).
5| Visconde de Castanheira de
Pera. a) A primeira vez que o topónimo «Castanheira de Pera» surge no
jornal oficial foi em 1864 no então «Diário de Lisboa» (nº 281 de
13/12/1864, pág. 6), transcrevendo do jornal Conimbricense a
notícia da inauguração da fábrica da Retorta. 9 b) Seguem-se no Diário
do Governo em 1876 (15/9, 21/9 e 14/12) correspondências endereçadas a
Castanheira de Pera, retidas por insuficiência de franquia. Possível acto
deliberado para inserir o topónimo «Castanheira de Pera» no jornal oficial.10 c) Outra
publicação ocorreu em 1879 quando foi conferido a António Alves Bebiano –
Castanheira de Pera – o «Diploma de medalha de ouro», 3º grupo - «panos pretos»
- numa exposição portuguesa no Rio de Janeiro, (DG nº 238 de 20/10/1879 – pág.
2457).10 d) O prestígio deste industrial
crescia de tal modo que por decreto de 27/1/1881, publicado a abrir a 1ª página
do Diário do Governo nº 61 de 18/3/1881, o
rei D. Luiz concede-lhe o título de «Visconde de Castanheira de Pera», em vida.
(Nota – o marcador do link 10 não captou este decreto. Sugere-se abrir qualquer DG e em cima nas ferramentas, seguir para: 1881 – março - nº 61 (18 de março)
Este
decreto constitui um marco histórico na vigência do topónimo Castanheira de
Pera que passou, logo no ano seguinte, a constar dos debates
parlamentares da monarquia constitucional11 e
das sucessivas publicações no «Diário do Governo».10 Aquando desta mercê (1881) o rei e a sua corte, o
visconde e assessores era decerto com a ribeira de Pera e sua indústria que
todos estavam sintonizados e naturalmente com as aldeias deste espaço donde
provinham os braços que a laboravam. A ribeira de Pera, cuja
notabilidade tinha séculos – documentada desde 1502 – dava
assim o nome oficial à povoação de Castanheira de Pera. Bem andou Américo Costa
(1894-1937), autor do referido «Dicionário Corográfico de Portugal Continental
e Insular», (12 volumes), quando em 1934 no volume IV/1481, numa entrada de
quatro páginas sobre Castanheira de Pera, deixou expresso: «Castanheira de Pera é banhada pela ribeira de Pera, razão do seu
nome».
6| Conclusão: do acervo documental acumulado no âmbito temporal de
434 anos (1502 - 1936) resulta que a Selada de Pera deu o nome
à Ribeira de Pera e a Ribeira de Pera deu o nome à atual vila de Castanheira de
Pera.
C| Grande Enciclopédia. Horizontes da Memória
Passemos à desconformidade. No volume 28/161 da Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira consta a seguinte entrada: «SELADA DE PERA -
Ribeira que nasce na freguesia do Coentral, concelho de Castanheira de Pera e é
afluente da ribeira de Pera». E antes, no volume 21/69, estoutra:
«PERA - «Lugar da freguesia de São Domingos, concelho de
Castanheira de Pera. É um centro fabril de lanifícios e fiação. «Deu o
nome á ribeira de Pera e à vila sede de concelho».
Como vem expresso no volume 37/419, esta Grande Enciclopédia foi iniciada
em 1935 e completada, na sua parte geral, em 1958.
Entretanto em 2001, o Prof. José Hermano Saraiva
(1919-2012) veio a Castanheira de Pera fazer o programa sobre o concelho,
transmitido em 23/6/2001, mas que continua disponível em «RTP Arquivos
– Horizontes da Memória – Onde o Vento Cheira a Rosas». Visualizando
atentamente verifica-se que o programa segue, nesta parte, a mesma narrativa da
entrada na Grande Enciclopédia 21/69 quanto à origem do nome da ribeira e da
vila. O âmbito temporal destes dois eventos é de 66 anos (1935-2001).
Ora, que dizer de tudo isto?
Dir-se-á que a nova versão contida no eixo temporal 1935 - 2001 é
manifestamente incompatível com a anterior e documentada versão 1502 -
1936. E que, tal como está, sem fundamentação conhecida que a sustente, não
pode ser acolhida.
Os actos culturais que vinculem historicamente uma comunidade estão
sujeitos ao escrutínio dessa comunidade. A posição contida nas duas entradas na
Grande Enciclopédia, se tomada em sentido romântico, ainda se poderia
vislumbrar eventual ligação subjacente ao romance da “princesa peralta” inserto
nos diálogos XIII e seguintes da «Miscellanea» de Miguel Leitão de Andrada
(1553-1632). Mas não era esse o critério por que se regia o Prof. José Hermano
Saraiva, como deixou patente lá em cima na pista de aviação a propósito do «penedo
que caiu». Se hoje fosse possível colocar o historiador perante este quadro
afigura-se que ele se sentiria incomodado. E teria, porventura, alguma conversa
com a assessoria da produção. Porventura.
Francisco H. Neves
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(Nota - Na edição impressa esta foto saiu por lapso trocada).