Gentílicos locais … «Pedras Negras
nos Coentrais» …
… «honrados no Fontão» … … "fidalgos
na Ortiga" …
«In aquilone per viam que
ducitur ad sanctaren»
1|Listagem. De autor
desconhecido e transmissão oral existe neste concelho uma espécie de dicionário
desordenado, uma listagem de “gentílicos” locais que terá surgido na I República,
porventura numa acção de carnaval ou de teatro (jograis). A referência a «cidadãos», «combate» e «liberais»
aponta para essa época. Tempo do qual um reverendo cónego1 observou: «Quando nasceu a República, tudo
passou a ser cidadão». «O padre… o professor, o médico, o advogado, tudo
cidadão fulano, sem mais aparelho». E
nem «certos particulares… dispensavam a alcunha».
A referência a «combate na Castanheira» significará as lutas político-partidárias.
Já referência a «liberais» andará pelas liberdades então vivenciadas. A lista terá
tido ao longo do século outras versões. Mas
é esta listagem (caixa) que se conhece impressa. E
também codificada.2 Outras versões
terá havido porquanto alguns cidadãos não se revendo no locativo catalogado deram
um chega pra lá, invocando o seu outro. Recordamos
há dezenas de anos escutar seniores do lugar dizerem-se de «honrados no Fontão».
Assim como recordamos de fontes orais dispersas o gentílico "fidalgos na Ortiga". A serra da Ortiga, em cujo planalto se situa o Parque
Eólico é hoje visível de todo o concelho. Não é conhecido nesta área do
município qualquer referência a nobreza donde provenha fidalguia. Mas, como transmite
universal provérbio «não há fumo sem fogo». Daí o partir-se em busca dum eventual
fundamento.
2|Primórdios. Pós-terramoto de 1755, num conhecido relatório paroquial
de 1758, a Ortiga está citada duas vezes, sendo uma delas como lugar serrano.3 Com «lugar» no sentido de povoação. Enraizada
tradição oral proclama que «o Fontão veio da Ortiga». Donde a Ortiga ser anterior
ao Fontão. Fontão que já existia em 1502, quando um seu morador, Vasco Esteves,4 interveio no processo da criação da Paróquia
de S. Domingos da Castanheira. Como povoação afigura-se que a origem da Ortiga
de Cima remonta aos primórdios da nacionalidade, mercê de dois fatores locais: abundância de água e proximidade da
via militar (Sec. XII).
Atualmente, visto de fora,
é tudo Ortiga, (Ortiga de Cima, Ortiga de Baixo, Cova do Pião, Porto Salgueirinho).
Porém, as courelas e cardenhas erguidas na Cova do Pião e Porto Salgueirinho nada
têm a ver com a (histórica) Ortiga de Cima, porquanto terão sido erigidas
séculos mais tarde, já a mando do Fontão. Sendo certo existirem hoje na área dois
espaços comuns: o caminho da Ortiga
subindo desde o Vale das Figueiras e, de inverno, o córrego da Ortiga que, escoando
da vertente leste do parque eólico, corre por Ortiga de Cima, Ortiga de Baixo,
Cova do Pião, Porto Salgueirinho, Corredor, Dordio onde se junta ao ribeiro do
Fontão, para desaguar na Ribeira de Pera.
3|Água. Hoje muito está debaixo dos eucaliptos. Mas ainda permanece na memória
dos seniores, a pouca distância do parque eólico, uma abundante nascente de
água à superfície de tal modo que o município instalou canalização para
abastecimento da vila. Ainda hoje ativa é a «mina das Fontanheiras». À direita,
mais além, uma área de prado verde (pastagem) com outra fontanheira a
borbulhar. Mais abaixo, nas courelas,
outras nascentes de regadio. A água foi
sempre essencial á fixação das gentes.
4|Via militar. Do perímetro do foral de Pedrógão
1206, concedido por D. Pedro Afonso, recuperamos a delimitação Norte: «In
aquilone per uiam que ducitur ad sanctaren». Isto é: do Norte pela via
que conduziu a Santarém.5 Este limite
N (norte) do concelho de Pedrógão é, no terreno, o mesmo que passou
a constituir o limite W (poente) do concelho de Castanheira de
Pera, quando este foi desanexado em 1914. Corresponde à cumeada Trevim – Cabril – Ortiga
– Carregal Cimeiro, que se desenvolve no sentido norte/sul. Limite W que
ainda hoje se mantem exatamente igual, fixando a divisória com a vizinha
freguesia de Campelo. Em edição anterior 6
consignámos, além do mais, esta narrativa:
«Quando na chancelaria régia (1206)
os signatários do foral disseram no documento «In aquilone per uiam que ducitur
ad sanctaren», mais do que registar uma delimitação territorial, estavam
porventura a pensar e significar para memória futura, as forças militares que,
provindas do Norte, sob seu comando, por aqui transitaram em missões a Santarém
(1147 e 1184) … via Chornudelos - Abdegas – Albardos – Pernes».
Clareando a interpretação: na cumeada da
Ortiga, passou uma força militar de D. Afonso Henriques com destino a Santarém
em 1147 (tomada da cidade) e/ou 1184 (cerco da cidade). Dado o secretismo da
missão (1147) o rei optou por itinerários desenfiados. Já que estradas romanas para e de Santarém havia
várias…
Numa hoste militar não basta considerar apenas a qualidade e nobreza dos cavaleiros. Há que prever e prover a situações de sede, fome, sono, doença. Carriagem, forragens, provisões, vitualhas, água. Guias, estafetas, mesteirais. Arraial. Em suma: logística.7
5| Logística. Em todo o
concelho de Castanheira de Pera a Ortiga de Cima, incrustada na serra, é
a povoação mais próxima da via militar. A
explicação, para além dos mananciais, poderá encontrar-se no apoio logístico às
forças reais, aqui constituído, aquando das ações militares na região durante a
«reconquista». Mormente em 1147 à passagem da força provinda de Viseu, retemperando
forças e agilizando a marcha para se juntar à hoste real em Chornudelos (Soure),
rumo a Santarém.
Nestas ações militares decerto passaram na Ortiga godos, nobres,
fidalgos. E terá sido então, aquando de tal apoio logístico que, por extensão semântica,
com alguma metáfora à mistura, o conceito terá passado de fidalgos apoiados para
mesteirais apoiadores, com assim nascendo o gentílico “fidalgos na Ortiga”.
A omissão no catálogo republicano tem explicação óbvia: tratava-se de conceito
monárquico… Por outro lado, explicado fica também a ratio da costumada mensagem
dos seniores segundo a qual «a Ortiga está no mapa». E o próprio topónimo
Ortiga poderá ter origem numa arma de artilharia antiga que nessa época por
aqui se tenha manuseado.8
6|Estudo. Pistas existem. Cientistas também. Vetusta de 8
séculos afigura-se que a histórica delimitação territorial «In aquilone per
viam que ducitur ad santaren» de há muito podia estar devida e
cientificamente estudada. Quiçá sinalizada no terreno. Para memória futura. Para
contemplação no presente!
Fn
Notas de fim de página:
1-
Fonseca da Gama,
Terras do Alto Paiva, 1940
2-
Monografia/2004/379
3-
Monografia/2001/115
4-
Monografia/2004/114
5-
Miguel Portela,
Indícios de Cister em terras de Monsalude (Separata/56).
6-
Edição impressa
30/9/2018. Blogue «Crónica da Fraga», 1/10/2018
7-
Elise Cardoso, A
logística Militar de Quatrocentos (Mestrado)
8-
Conclui-se como
em 30/9/2018: «A demonstração dos factos históricos é quase sempre hipopéptica,
sobretudo quando eles se situam numa época tão remota como o sec. XII. Aquilo
que é possível, admissível, verosímil, hipotético ou provável, não se pode
transformar em certeza», (José Matoso). É sob esta lição tudo o que de novo
fica dito.
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Texto in O RIBEIRA DE PERA edição impressa de 30 junho 2023