terça-feira, 10 de outubro de 2023



Em 1855 uma questão paroquial subiu ao
 Supremo Tribunal Administrativo 
Paroquianos de S. Domingos ganham a causa

 


1| Pé de Altar. Na época do liberalismo o Clero como que passou a função pública. Mas o seu sustento manteve-se nas paróquias, conforme carta de lei de 5/3/1838, (DG de 13/3) e carta de lei de 20/7/1839, (DG de 30/7). Em todos os concelhos do Reino (no nosso caso Pedrógão Grande) havia uma Junta de Arbitramento para deliberar sobre o montante anual da «Côngrua» (quantia arbitrada aos párocos para a sua decente sustentação), considerando o «Pé de Altar» (soma das taxas pagas pelos paroquianos por serviços religiosos prestados: batizados, casamentos, cerimónias fúnebres, outros) e, consoante o caso, uma «Derrama» (imposto a repartir pelos paroquianos na proporção dos respetivos rendimentos). O montante da côngrua era fixado anualmente para o ano económico seguinte. Começava a ser preenchido pelo estimado Pé de Altar. Não chegando, derrama sobre os paroquianos. 


2| O caso concreto. Corria o ano de 1839 quando a Junta de Arbitramento (pressupondo-se um Pé de Altar de 100$000 réis) fixou a côngrua do pároco em 160$000 réis e a côngrua do coadjutor em 60$000 réis, (sessão de 5/12). Havia então na Paróquia de São Domingos pároco e coadjutor. Sucede que no ano seguinte (1840) deixou de haver coadjutor. Daí que em sessão de 18/1/1841 a Junta de Arbitramento (avaliando agora o Pé de Altar em 106$000 réis), atendendo a que o pároco passara a acumular o serviço do coadjutor, atribuiu-lhe também a côngrua deste, ficando assim o pároco com a côngrua cumulada de 226$000 réis (166$000 + 60$000 = 226$000). Cumulado o serviço, cumulada a côngrua. Sendo, porém, a acta omissa quanto a este ponto. Na verba do coadjutor colocara-se um traço de tinta e só posteriormente é que sobre este traço e da parte da margem da acta foi lançada a seguinte nota: «Não há, mas atendeu-se na côngrua do pároco». Sem ressalva alguma no corpo da acta. Nos anos seguintes as actas umas referem não haver coadjutor e outras são omissas. E assim se manteve - cumulado o serviço, cumulada a côngrua - durante os doze anos seguintes 1841/1853, suposto que tudo em paz paroquial. Até que em 1853 o prelado diocesano nomeia um novo coadjutor para a Paróquia de São Domingos das Castanheira. E vai daí a Junta de Arbitramento de Pedrógão (sede de concelho) em sessão de 25 de junho, atribui ao novo coadjutor uma côngrua no montante de 37$660 réis, deixando ao pároco a mesma soma cumulada de 226$000 réis.  

E aqui surge a questão!

Entendem os paroquianos que não podem ser onerados com duas côngruas para o coadjutor, uma fixada em 1841 no montante de 60$000 réis e outra fixada agora em 1853 no montante de 37$660 réis. Daí que no ano seguinte 1854 alguns paroquianos tenham reclamado perante a Junta de Arbitramento. Mas esta indeferiu tudo. 

Inconformados os paroquianos recorreram então para o Conselho de Distrito (Leiria) que, por Acórdão de 28/9/1855, acolheu ambas as pretensões, decidindo que a verdadeira côngrua do Pároco era de 166$000 réis e que o valor do Pé de Altar era agora de 137$360 réis conforme, aliás, os próprios documentos paroquiais.  

   

3| Conselho de Estado. Inconformado é agora o pároco a interpor recurso para o Conselho de Estado - Secção de Contencioso Administrativo, (hoje Supremo Tribunal Administrativo. Pugnando, essencialmente: a| Pela manutenção do Pé de Altar em 106$000 réis por imperativo legal. b| Pela manutenção da sua côngrua nos mesmos 226$000 réis, invocando, além do mais, a falsidade daquela nota na acta de 1841.

O processo correu seus trâmites e a final o Conselho de Estado proferiu elaborado parecer no sentido de: 1) Dar razão ao Pároco no tocante à manutenção do Pé de Altar em 106$000 réis, visto e achar congelado por Lei geral de 8/11/1841. (A razão era evitar a luta anual entre párocos e fregueses); 2) Dar razão aos paroquianos quanto às côngrua do pároco ser apenas de 166$000 réis (pé de altar base de 106$000 réis), confirmando, nesta parte, o acórdão distrital. 

Quanto à alegada falsidade a competência para dela conhecer cabia aos tribunais civis. Como o pároco não se disponibilizou a invocá-la no foro civil o tribunal administrativo dela não tomou conhecimento.

Quanto ao desdobramento das duas côngruas ponderou o Conselho de Estado:  

«Considerando, quanto à dedução da côngrua do coadjutor da quantia assinada à côngrua do pároco, que a grande elevação da côngrua do pároco arbitrada na sessão da Junta de 18 de janeiro de 1841, sobre a do ano antecedente, tem natural e obviamente a explicação que foi expressada na nota da respetiva acta, não se mostrando justificada por nenhum outro princípio».

Quer dizer: «em 1841 foi incluída na côngrua do pároco a do coadjutor, pela contemplação de que, sem o auxílio deste, satisfaria aquele todo o serviço da Igreja». 

E assim«devia ter cessado na côngrua do pároco a parte correspondente à côngrua do coadjutor, logo que cessou o fundamento por que ela lhe acrescera».

Ou seja: nem o Pároco nem a Junta apresentaram outro fundamento capaz de afastar a cumulação contida naquela na nota na acta de 18/1/1841.Com este parecer do Conselho de Estado concordou o rei D. Pedro V, (reinado 1853-1861), sendo o Acórdão assinado no Paço das Necessidades em 15/12/1858.  


4| Presbytero. O pároco recorrente neste processo P. Manoel Joaquim Rodrigues Corrêa foi Pároco titular da Paróquia de S. Domingos durante cerca de 37 anos (1854-1891). Registos de batismo escritos e assinados por si.1  No DG nº 223 de 22/9/1857 está publicada a sua apresentação na Igreja de São Domingos da Castanheira do Pedrógão. E por decisão publicada no DG nº 262 de 19/11/1891 foi-lhe reconhecido o direito à aposentação, com base na referida côngrua de 166$000 réis. Tinha 67 anos em janeiro de 1891. (Existe alguma atividade sua já em finais 1853 e começos de 1892).

 

5| Prudência. Uma côngrua paroquial de 226$000 réis mantida durante doze anos consecutivos pode criar em algumas pessoas a convicção – certa ou errada - de valor individual. A composição das Juntas de Arbitramento vai rodando no tempo e por vezes os novos elementos nem sempre conhecem os casos, se não lhes forem devidamente transmitidos. Por isso importa que as actas sejam devidamente elaboradas, conferidas e assinadas.  Podem vir a ser documentos essenciais.

Agora quanto ao coadjutor impressiona no ano de 1839 ser-lhe atribuída a côngrua de 60$000 réis, valor máximo a passar (160$000: 3=53$333 réis), e, doze anos volvidos (1853) a côngrua mínima de 37$660 réis. Tudo na vigência do mesmo quadro legal: «máximo 1/3, mínimo 1/6 da côngrua do Pároco» (Artº 3º da Carta Lei de 20/7/1839). Curioso o critério da Junta 1853 que, atribuindo ao coadjutor a côngrua matemática mínima, estava implicitamente a significar que a outra soma 226$000 réis era a côngrua do Pároco (226$000: 6 = 37$666). Na alegação de recurso também o pároco alegara (seu advogado) que as côngruas do pároco e do coadjutor são individuais e separadas. E se a Junta atribuiu ao coadjutor uma côngrua separada (37$660) é porque a outra (226$000) era a sua. Trata-se dum argumento circular, visto que o que estava em causa era saber do fundamento daquele montante 226$000 réis. Quanto ao Pé de Altar interessava aos párocos ser estimado pelo baixo. Porque a côngrua era preenchida pelo pé de altar + derrama.  Pé de altar incerto, derrama certo.  

 

 6| Leitura integral. O acórdão, relatado pelo Conselheiro José de Cupertino de Aguiar Ottolini, foi assinado no Paço das Necessidades em 15/12/1858 pelo =REI= e pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, António José d´ Ávila. Depois dos «conformes» foi publicado no «Diário do Governo» nº 48 de 25 fevereiro 1859 (p.250) disponível on line no portal DIGIGOV (digigov cepese), clicando em jornais e seguindo na barra para a data indicada. 

  

1|Registos de batismo disponíveis on line seguindo: Arquivo Distrital de Leiria – Fundos e coleções – Paroquiais - Castanheira de Pera. Coentral. (selecionando o ano e manuseando o visualizador que surge à direita). 

Francisco H. Neves



(Texto in «O RIBEIRA DE PERA», edição impressa de 30/9/2023).