quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

 


 

 dia de amigos - dia de amigas - dia de compadres - dia de comadres - na literatura.

 Elvas - Ilha Terceira - Monchique – Sertã - Vila Nova do Paiva

 

Esta «Fraga» vem no seguimento da inserida em edição de 31/12/2019 e visa percorrer a escassa literatura nacional numa abordagem continuada ao «dia de amigos/as».

 

1| António Cabral. Douro. António Joaquim Magalhães Cabral, (1931-2007), escritor duriense (Link 1), autor de «Tradições Populares II», edição INATEL, 1999. No cap. 13 escreve: «As tradicionais folias carnavalescas das comadres e dos compadres ocorrem por via de regra, nas duas quintas-feiras que antecedem a terça-feira gorda, podendo em algumas localidades, compreender as duas quintas-feiras anteriores, segundo esta ordem: Amigos, Amigas, Compadres Comadres». Todavia, não fez constar os lugares das celebrações «amigas» e respectivos programas, o que seria interessante para memória futura. Ainda assim, regista: «...o costume… em Castelo (Sertã)… vem logo a seguir ao Dia de Reis».

  

2| Fonseca da Gama. Vila Nova do Paiva. Com prefácio de Aquilino Ribeiro (1885-1963), «Terras do Alto Paiva», Lamego, 1940», é uma obra culta, autoria do Cónego Manuel Fonseca da Gama, (1882-1950), acerca do concelho de Vila Nova do Paiva, geografia, história, vida e costumes regionais. (L2). E, dentre estes, no cap. XV, a seguir ao Natal, comenta: «Vem depois a quadra folgazã, bulhenta e barulhenta do Carnaval.  Onze dias antes da Septuagésima, na 5ª feira, é o dia de Amigos; na 5ª feira imediata, o das Amigas; na 5ª feira que precede a sexagésima é o dia dos Compadres; o das Comadres é a que antecede o domingo gordo. Não têm aqui outro significado, senão em se juntarem os amigos a fazer uma súcia animada. Pelos compadres é que as raparigas costumavam fazer uns bonecos de palha ...». Não factualiza o reverendo cónego o conteúdo da «súcia animada», mas tratar-se-ia duma ludicidade típica da quadra, incluindo uma pandegazinha queirosiana.  Nota – Neste livro ninguém fica indiferente à «sentença do juiz de Barrelas» (103), ao Prior do Crato homiziado em Fráguas (338), à paisagem da «Cintra da Serra» (321), além do mais.

 

3| Castanheira de Pera. Quando em 2015 se restaurou em Castanheira de Pera o «dia de amigos», ainda permanecia «in cloud» alguma reminiscência de coisa antiga...  E com fundamento!  O Cónego Fonseca da Gama, nesse seu livro «Terras do Alto Paiva», insere a abrir, «palavras prévias» de louvor à terra e, de permeio, certifica: «A Igreja com o seu mistério …  com as festas solenes de música e foguetes… mordomos ufanos da sua importância, enfrascados nos seus fatos de cheviote ou grossa casimira e jaleca de carapinha, fazenda que o Barros da Castanheira de Pera carregava em fortes machos e vendia de porta em porta, como o Cura a tirar o folar…».

Tratava-se de António de Barros, probo industrial de Castanheira de Pera (lanifícios), «patriarca» da família Barros (que viveu nas Vacalouras), que assim percorria as Beiras, por toda a parte fazendo amigos. Em terras do «Alto Paiva» integravam a tertúlia:  Aquilino Ribeiro – Fonseca da Gama – António de Barros. E terá sido por via deste empresário e seus assessores que o «dia de amigos» se presume importado para Castanheira de Pera. Hoje o seu bisneto Pedro Barros é aqui co restaurador (2015) e dinamizador deste «segundo tempo» da Amizade.  Afinal trazendo consigo o ADN do bisavô! 

 

4| Joaquim Nogueira. Sertã. Natural de Várzea dos Cavaleiros - Sertã, Joaquim Dias Nogueira, (1933 -   ), descreve no seu livro «Memórias de um Beirão da Zona do Pinhal», 2014, (L3), como eram vividas no seu tempo e na sua freguesia as quatro quintas-feiras anteriores ao «Entrudo»: quinta-feira de rapazes, quinta-feira de raparigas, quinta-feira de compadres e quinta-feira de comadres.  Na «quinta-feira de rapazes» estes, depois de bem comidos e bem bebidos (pandegazinha queirosiana) dirigiam-se a uma encosta defronte onde procediam à divisão do burro pelas raparigas da povoação. Na seguinte «quinta-feira das raparigas» estas juntavam-se na casa de uma delas para comentar a divisão. Gargalhadas, doces, aperitivos.  Os dias de compadres (sumo da uva) e comadres (chá e torradas) eram celebrações caseiras. Para maior desenvolvimento cf. «Animus Semper». (L4).  A propósito, dir-se-á que também pelo concelho de Castanheira de Pera, até há cerca de 40 anos, a «partilha do burro» era evento carnavalesco, ainda presente na memória dos maiores.

 

5| Veiga de Oliveira. Etnólogo. Ernesto Veiga de Oliveira, (1910-1990), conceituado etnólogo é o autor de «Festividades Cíclicas em Portugal», D. Quixote, Lisboa, 1984 (L5). No cap. 3 desenvolve os «Compadres» e as «Comadres» («ciclo do carnaval»), escrevendo: «De um modo geral o início do ciclo é impreciso, mas… no Castelo (Sertã) ele começa logo depois dos Reis…».| «Por vezes, como é o caso da Ilha Terceira (Açores) e em alguns raros lugares do continente, designadamente na Beira Alta, em Terras do Alto Paiva e em Monchique, e numa forma que corresponde porventura à cerimónia originária completa, a celebração compreende, além das quintas-feiras dos compadres e das comadres, mais duas quintas-feiras, que antecedem aquelas e que se chamam, por ordem de datas, quinta-feira de Amigos e quinta-feira de Amigas.

E, em notas de rodapé - pág. 21 e 52 - citando Van Gennep, amplia:  

«Em França, encontramos o paralelo destes costumes no Bourbonnais, por exemplo, onde se celebra a quinta-feira anterior ao carnaval como sendo o dia da festa dos rapazes, o domingo de carnaval como o das raparigas, a quinta-feira seguinte como o das mulheres e o primeiro domingo da quaresma como  o dos homens; em Mônetier-les-Bains, onde se celebram as quatro quintas-feiras anteriores ao carnaval, tal como entre nós, como sendo as dos rapazes, raparigas, pais e mães, respetivamente; e na Alsácia, onde além da festa dos amos, em domingo gordo, se celebram os dois primeiros domingos de quaresma, como sendo os dos rapazes e das raparigas».

Seguidamente cita localidades e variantes (norte a sul) dos compadres e comadres e, quase a final deste cap. 3, regista: «… em Elvas, nas Quintas-Feiras de «Comadres» e de «Amigas» (primeira e terceira semanas antes do carnaval), e nas de «Compadres» e de «Amigos» (segunda e quarta), as raparigas e os rapazes, respetivamente, reúnem-se em casa de uma delas e de um deles, comem, bebem, cantam…».  

 

6| José Gascon. Monchique. José António Guerreiro Gascon (1851-1950), publicou em 1919, na «Revista Lusitana», volume XXII, (L6), um artigo desenvolvido sobre «Festas e Costumes de Monchique», festas religiosas, costumes vários e, dentre estes, um sorteio de comadres e compadres. «E, como o tratamento de compadre é muito apreciado e preferido a qualquer outro…». E em exclamação final: «Pois se até na quaresma, além das quintas-feiras de amigos e d’amigas, uma quinta-feira de comadres e outra de comadres!». Contudo, o autor não refere o significado destes dias da amizade, decerto notórios ao tempo, mas sem memória futura. O texto foi depois transcrito no livro: «Subsídios para a Monografia de Monchique», (1957).

 

7| Manuel Andrade. Angra do Heroísmo. Na Ilha Terceira, Açores, pontificou Manuel Joaquim Andrade, (1879-1961), que em janeiro de 1918 inicia a publicação do «Almanaque do CAMPONEZ», onde logo fez eco destes eventos e seus programas:  dia de amigos (uma pandegazinha pacata); dia de amigas (confidencias no feminino); dia de compadres (filhoses e presente aos afilhados); dia de comadres (bulezinho de chá). «Almanaque do CAMPONEZ», cuja publicação se tem mantido ininterrupta até aos nossos dias, com já nas bancas a 104ª edição (2021). São mais de 100 anos a partilhar a chama da Amizade.  Contributo valioso para a dinâmica que estas tradições assumem em toda a Região Autónoma e sua diáspora. Caso ímpar a nível nacional! 

 

8| Dia de amigos. Programa. Fontes.  Hoje o dia de amigos tem feição visivelmente popular, mas a sua origem terá sido fidalgo-burguesa. Mutações várias ocorreram na última meia dúzia de gerações. O «programa» (jantar) provém do mundo pândego (pândega, pandegazinha, pandegaria), tão bem retratado pelos escritores naturalistas Eça de Queiroz e Aloísio de Azevedo, no último quartel do século XIX; mundo onde se insere um fino fidalgo açoriano (Carlos Fradique Mendes (1830-1888) neto da tradutora de Klopstock). Quanto às raízes, melhor dizendo agora, quanto às «fontes» o «funil de captação» é muito amplo, mas o essencial provirá do «dia de rapazes» e do desdobramento (ou não cumulação) do «dia de compadres». Com efeito:  a). Conversão do «dia de rapazes» em «dia de amigos», conceito mais chique como diria Dâmaso Salcede de «Os Maias» (1888). Paradigmático o «jantar de rapazes» que o conselheiro Acácio ofereceu, por sinal numa quinta-feira, a cinco convidados, mas que repetidas vezes (seis) trata de «meus amigos» (1878). Em suma: Jantar de rapazes = jantar de amigos. Outros jantares de rapazes houve no H. Universal.  b). Veiga de Oliveira in «Aspectos do compadrio em Portugal», (Separata. Dep. legal 49693/60), sobre compadres de batismo, enfatiza: «O tratamento de «compadres» entre os padrinhos e pais dos afilhados não é de uso geral, especialmente entre as classes elevadas…».  Ora, se estes compadres elevados não se têm como tal, então o seu lugar passará pelo dia de amigos. c). Compadres (parentesco) ultramontanos permanecendo no caseiro dia de compadres e compadres anticlericais a transitar para o dia de amigos. d). Compadres de carnaval. Geralmente confecção de bonecos, vestidos de homem (compadres) por parte das raparigas e de bonecas, vestidas de mulher (comadres), por parte dos rapazes. Exibidos por um grupo e de que o oposto se tenta apoderar. Por fim a queima dos bonecos, pretexto para testamentos jocosos e satíricos, assuadas, troças, pulhas, cujos excessos causaram protestos e zaragatas. O costume foi-se extinguindo e a rapaziada transitando para o dia de amigos. e). Ainda os inconvenientes do bródio caseiro, conforme referido na edição anterior (31/12/2019).

 

9|Em síntese: É escassa a literatura nacional sobre o dia de amigos/as. Campo aberto a antropólogos, etnólogos, sociólogos, investigadores. Arnold Van Gennep, (1873-1957) é o antropólogo mais citado por António Cabral e Veiga de Oliveira.

                                                                                                      Francisco H. Neves 




Link 1    ANTÓNIO CABRAL

Link 2    FONSECA DA GAMA

              FONSECA DA GAMA     

Link 3   JOAQUIM NOGUEIRA

              JOAQUIM NOGUEIRA

Link 4    ANIMUS SEMPER

Link 5   VEIGA DE OLIVEIRA

Link 6    REVISTA LUZITANA

Link 7    VAN GENNEP

Link 8    EDIÇÃO ANTERIOR

 



 Texto in O RIBEIRA DE PERA edição impressa de 31 de Dezembro de 2020