sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

DIA DE AMIGOS -  DIA DE AMIGAS 

DIA DE COMPADRES - DIA DE COMADRES



NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉC. XIX AS RAÍZES DO «DIA DE AMIGOS»


1). Calendário 2020 
  


O tempo de carnaval decorre entre o dia de reis e a quarta feira de cinzas.  Sabendo-se a em cada ano a data do dia de entrudo sabe-se logo a data destes eventos, porquanto ocorrem sempre nas quatro quintas-feiras anteriores. Em 2020 a terça-feira de entrudo acontece a 25 fevereiro. Logo, sucessivamente, temos:  30 janeiro dia de amigos; 6 fevereiro dia de amigas; 13 fevereiro dia de compadres; 20 fevereiro dia de comadres. Os dias de compadres e comadres são transversais a todo o território nacional. Deixemos. Vamos abordar o dia de amigos e o dia de amigas, datas que se vivem intensamente na Região Autónoma dos Açores, nas comunidades da emigração e em alguns núcleos continentais onde vivem açorianos ou continentais que aqui recuperaram a tradição, como é o caso de Castanheira de Pera desde 2015.  Normalmente ocorrem com separação de géneros. No dia de amigos só participam homens (Link 1). E no dia de amigas só entram mulheres, quer nos Açores (Link2), quer na emigração. (Link 3). Mas nem sempre assim foi, como é referido no flash RTP 2018.  A tradição açoriana é secular, mas a grande dimensão ora atingida é coisa recente.  A melhoria dos níveis de vida, as redes sociais e os novos espaços de hotelaria estimularam a dinâmica destes eventos.    


2). História 

O dia de amigos e o dia de amigas são tradições populares portuguesas, não oficiais, nem oficiosas. Documentadas nos Açores desde 1918.  Nada têm a ver com dias internacionais do amigo (30 de julho), da juventude (12 de agosto), da mulher (8 de março), da rapariga (11 de outubro), do homem (19 de novembro), que são datas políticas, de criação oficial posterior. Mas afinal qual a história do dia de amigos (as)?  A informação é escassa. Vamos cuidar do que temos.  E aguardar contributos.  


3). Não faz sentido  

Em alguns sites açorianos circula, maquinalmente, esta corrente:   

«Calcula-se que esta tradição tenha cerca de 100 anos. Em quase todas freguesias das ilhas as pessoas juntavam-se às quintas-feiras, conhecidas como noites de serões, para escolher o trigo e outros cereais que seriam utilizados nas comemorações do Espírito Santo, ao mesmo tempo que eram declamadas poesias e cantigas que falavam de amizade».  

Ora, salvo o devido respeito, afora o centenário, esta narrativa não faz sentido. A safra do trigo ocorre em junho / julho. É uma azáfama: segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado.  Os dias são grandes. Trabalha-se de sol a sol, não sobra tempo para serões.  Já a safra do milho ocorre em setembro/ outubro. É outra azáfama: segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado.  Aqui houve (na monarquia?) serões nas descamisadas. Serões animados, entreajuda, onde se ria, cantava, tocava, ceava. Mas as cantigas eram as do folclore continental e açoriano. Estão todas aí nos cancioneiros.  O «chi-coração» (abraços) resultava de se achar uma espiga vermelha.  E quanto a «falar de amizade», isso fala-se durante o ano todo, todos os dias da semana.  Mas pior a desconformidade: se a intenção dessas escolhas de cereais era o Espírito Santo - questão de Fé! - como é que tal sentido é depois tergiversado para o carnaval?  Admitindo-se que tais escolhas ocorriam à 5ª feira (?), ainda assim o nexo sempre seria com uma quinta-feira de Pentecostes, (Império do Livramento?) e não com uma quinta-feira de carnaval. E a amizade ao Espírito Santo? Até a «quinta-feira da espiga» é um dia religioso, (quinta-feira d’Ascensão) e na simbologia do ramo nem entra a amizade. Resumindo: uma perplexidade.  



4). O «Almanaque do Camponez» de 1918 explica.  

O «Almanaque do Camponez» de Angra do Heroísmo, (Ilha Terceira), fundado e coordenado por Manuel Joaquim Andrade, (1879/1961), logo no primeiro ano de publicação em 1918, já inseria estas datas e com anotações reveladoras.   

Anotação do dia de amigos de 1918: 
«Hoje é dia de amigos. Escolhe dois ou três, dos mais firmes, e organiza uma pandegazinha pacata, porque os tempos não vão para graças. Contas do Porto, isto é, quem comeu pagou. Amigos, amigos, negócios à parte».

Anotação ao dia de amigas de 1918: 
«Deixa lá as raparigas umas com as outras, porque elas têm confidencias a fazer, sobre cousas de que tu não percebes nada».

Anotação ao dia de entrudo de 1918: 
«Acaba com o resto da linguiça. A dona da casa que faça fatias em abundância e depois de teres o papo cheio sai para a rua e enfarinha as raparigas. Anda-me com elas». 

Quanto as «confidencias» femininas ainda hoje se mantêm. E quanto às «contas do Porto» ainda hoje se praticam.  Está tudo nos vídeos supra. Quanto às «graças». «Os tempos não vão para graças» … Pois não. E assim continuariam por várias décadas: a pneumónica de 1918, as mazelas da 1ª guerra mundial, a 2ª guerra mundial, a guerra colonial, a descolonização, o sismo de 1980 (grupo central) e os anos da reconstrução foram realmente tempos difíceis. Não azados a celebrações.  Aliás, difíceis já vinham os tempos dantes de 1918. Apesar da revolução liberal de 1820, a escravatura em Portugal só foi abolida por Decreto de 25/2/1869 e, mesmo assim, com efeitos diferidos a 29/4/1878. Abolida a escravatura, permaneceu no terreno uma servidão de facto, mormente sobre as mulheres. Ainda está presente em memória coletiva as «criadas de servir», recrutadas nos meios rurais pobres, crianças desviadas das escolas primárias, para servir em «casas das senhoras», a tempo inteiro, praticamente pela côdea, quantas vezes sujeitas à grosseria das «senhoras», quiçá dos «senhores».  Esta sujeição feminina vinda da monarquia, atravessou a I República e só se começou a inverter em pleno Estado Novo com a execução do «Plano dos Centenários», (1940/1960), com milhares de escolas primárias construídas ou remodeladas por todo o país. (BNP = SA 5401/9 A).  Mas apesar haver escolas, o analfabetismo mantinha-se elevado. Em 1960 é decretada a escolaridade obrigatória efetiva até à 4ª classe para ambos os sexos, (DL nº 42994 de 28/5/1960). Com a GNR por montes e vales a retirar as crianças do trabalho infantil e encaminhá-las para a Escola.  Em 1964 é decretada a ampliação da escolaridade obrigatória para seis anos, para ambos os sexos, (DL 45810 de 9/7/64). Em 1968 são criadas e começadas a instalar por todo o país as primeiras mais de cem (100) escolas preparatórias do ensino secundário, (Portaria 23.600 – I Suplemento «DG» nº 213 - I Série, de 9/9/68). Ensino preparatório este dotado de auxílios económicos aos alunos carenciados. Entretanto, à retaguarda, eram instituídas as pensões sociais do Prof. Marcello Caetano, (DL 277/70 de 18/6/70). Assim começou a demorada inversão da sujeição feminina. O caminho foi longo e penoso. Outras reformas sociais e educacionais se seguiram nos últimos cinquenta anos.  Tornou-se possível converter a moeda «avós sujeitas à servidão» em «netas com formação universitária». E com assim enriquecer a amizade, bem expresso neste flash TVI 24, com mais de 1300 mulheres celebrando o seu «dia de amigas»! Ano 2018. (Link 4). 


5). Centenária.  

A principal lição a extrair do «Almanaque do Camponez» 1918 é que a tradição nos Açores é realmente centenária! Aritmético. Prova documental plena. Acresce que «O Camponez» /1918 faz mais duas revelações: 1) Ao inserir em anotação o «conteúdo» de cada data, o autor revela que as festas já vinham de anos anteriores.  2) E ao inserir o conceito de «pandegazinha», o autor abre aqui uma janela para o mundo pandego do último quartel seculo XIX, (1875-1900), onde afinal se encontrarão as raízes do atual «dia de amigos». 
Mundo pândego (pândega, pandegazinha, pândego) tão bem retratado pelos autores realistas / naturalistas como Eça de Queiroz (1845-1900), in «O Crime do Padre Amaro» (1876), in «O Primo Basílio» (1878), in «Tragédia da Rua das Flores» (1878), in «Os Maias» (1888), in «A Ilustre Casa de Ramires» (1900). E sobretudo in «A Capital» (1900), onde as referências são mais de duas dezenas. E como Aluízio de Azevedo (1857/1913) in «O Mulato» (1881).  Autor brasileiro, abolicionista, natural de São Luís (Maranhão), mas filho de diplomata português ali em exercício. Revela conhecer os costumes dos portugueses ali radicados. (Seguimos a edição 2010, Martin Claret - SP. (ISBN 978-85-7232-518-9). Vamos recuperar algumas imagens dessa pandegaria, cujo contexto é geralmente conhecido: («Pandegaria» em gramática é um substantivo derivado por sufixação nominal, como livraria, padaria, papelaria, escritaria).  
  

1. (Eça de Queiroz). «Aquelas ceias de Vila Clara, as tresnoutadas pândegas com violão, impressionavam sempre Barrolo, que as apetecia» … «Rapazes amigos».
2. «Devia estar no Lawrence, porque só com raparigas e em pândega é que o Sr. Dâmaso vinha para o Nunes».
3. «Virem a Sintra, para questões e amuos, isso não! Naquelas pândegas queria-se harmonia, chalaça e gozar. Coices não. Então ficava-se em Lisboa que era mais barato».
4. «Ramalhete” …. “Rapazes» ….  «Mulheres, não há quem as receba».
5. «Havia de ser divertido teu sogro. Tem cara de pândego! …».
6. «Tornou a encher o copo. Achava aquilo «uma pandega».
7. «Conselheiro Acácio» …. «Jantar de rapazes» …  «Meus amigos».
8. «Casa pasto tio Osório…  «Oh João! … «Com repentes, com vinho desordeiro, não havia pândega, nem sociedade, nem fraternidade!».
9. «Estava farta de sentimentalidade. Queria alguma coisa alegre! Uma música pândega…».
10 «Se estivesses aqui no Verão (Sintra) tu verias. Piqueniques, o (Lawrence) cheio, cavalgadas a Cascais, representações… É uma pândega».
11. «…  isto é bom, quando está quente, quando há cavaqueira!  No Verão é uma pândega».
12. «Madame… estava de humor cão!... Em Lisboa é pândega, canta…».
13. «Que grandes pândegas. Que patusca espécie de mulheres!».
14. «O amigo nunca esteve em Lisboa?… Então não sabe o que é a pândega»!
15. «Rabecaz … tinha preparado uma carta … para o pândego do Melchior».
16. «… o amigo Artur… quer conhecer a rapaziada literata… e encher o ventre da bela pândega».
17. «No fim para que se estava neste mundo? Para gozar, ter amigos, alegres, um bom jantarzinho, uma pandegazinha, umas mulherzinhas de vez em quando. E para isso não havia como Lisboa».
18. «… Sarrotini? É o segundo-baixo de São Carlos…  Grande pândego!».
19. «E depois há o prazer do jantar… Veja você o que nos temos divertido hoje. E então estando a rapaziada! São anedotas, chalaças, saúdes, uma pândega imperial».
20. «Hotel Universal …. «Jantar de rapazes» …. Fim (oculto) apresentar Artur Corvelo à «rapaziada literata». «Melchior (localista), Artur (romântico), Meirinho (videiro), Xavier (folhetinista), Cordeiro (ator), Padilhão (socialite), Sarrotini (barítono), Saavedra (o Século), Roma (poeta), Carvalhosa (deputado), Moura (tio Melchior), oficial de Lanceiros, guarda-livros”. Treze? Vem o Sr. Galinha. (13+1=14) …. «As ostras!» …. «Oh rapazes por quem sois!».
21. «D. Joana Coutinho» … Soirées …. Terças-feiras ecléticas …. Rapazes …. Raparigas …valsa».
22. «Grande patuscada! Tudo sossegadinho, sem desordens, sem troça, em boa amizade. Ceiazinha rica e belo fado! Enfim uma noitezinha cheia!». (Melchior para Artur).
23. «Não havia para o regalo do corpo e da alma como uma boa pandegazinha no Dafundo».
24. «Hoje sábado é o dia da pandegazinha…sílfides aceitam…Às 9h lá vou buscá-lo hotel».
25. «… para mim…  pândegas consigo acabaram».
26. «… que isso de pandega sem animação era dinheiro deitado à rua!».
27. «Tenho feito muitas pândegas com ele… No tempo do Sr. Visconde. Hem?».
28. «Hotel Dafundo…chinfrim… raparigas assustadas… volta para Lisboa… «Só começou a tranquilizar-se quando a tipóia rolou pela Rua do Ouro. Era uma pândega estragada».
29. «…vinha… de tarde… trazendo um espalhafato pândego àquele quarto amodorrado».
30. «Melchior… achava que não havia nada como «a pandegazinha ali à cachucha…»
31. «…na excitação do champanhe, juraram… sociedade pândega: Artur, Concha Cª».
32. «… não pode vir». «Estava no quarto da Mercedes em grande pândega».
33. «Domingo gordo… Rua Nova do Carmo….  cheia de gente… «Cartuchos de farinha estalavam… poeirada branca, revoadas de feijões estralejavam sobre os chapéus; sujeitos enfarinhados…». … «Eh seu Artur! Eh pandegazinha
34. «Terça-Feira de entrudo…Chiado… enfarinhamento pândego…pessoas da «primeira sociedade … ver as cancanistas ao Casino…  «Multidão de paletós…chapéus altos… dorsos curvados numa curiosidade sôfrega em volta do cancã. … as francesas… quatro… saracoteava-se… concupiscência burguesa… gingar frenético dos quadris…   bacante … grogues… conhaque…  champanhe. «Hen! meu amigo, bela pândega… E queria você ir para Oliveira de Azeméis!».
35. «Bazílio tinha sido … um «pândego», passara por … clássicos da estroinice lisboeta».
36. (Aluízio de Azevedo). «Raimundo… matriculou-se em Coimbra… sentiu-se bem dentro da romântica batina de estudante, meteu-se em pândegas com colegas…».
37. «D. Amância Souselas, velha de grande memória… conhecia todo o Maranhão… detestava o progresso… a máquina de costura…a leitura de jornais…a indecência do piano… a iluminação a gás….  «Dantes, os escravos tinham que fazer!... E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria do bico de gás e… caia-se na pândega!... Andam descarados… Chicote! Chicote até dizer basta».
38. «José Roberto… «seu Casuca» … cantava ao violão… «Gostava das serenatas, das pândegas com moças; pilhando dança…».
39. (Jantar do dia de São João, na Quinta de Maria Bárbara, um «sitio» no Maranhão.  Convidados… música… festa animada… conhaque… charutos… licor… dançara-se … sertanejo… «Pois não há como uma festa no sítio – dizia Sebastião por outro lado – Isto de pândegas, ou bem que é pândega ou bem que não é».  «Chamaram para a mesa… «O patrão, um; senhor cónego, dois; D. Maria do Carmo, três; as duas sobrinhas, cinco; o Dr. Raimundo, seis; seu Freitas e a filha, oito; D. Eufrasinha, nove; seu Serra e aquele moço, o Faísca, onze; o Dias e a D. Anica, treze ao todo».  Treze! Saia um!… ou venha outro… Venha o Casuca».   (13+1=14).
40. «Eram músicos de contrato, pândegos afeitos às serenatas. Violão…flauta…pistão… rabeca»
41. «Noite… silêncio… «Na rua grupos pândegos passavam em troça para o banho de São João.»
42. «O José Roberto afastara-se também e vivia por aí na pândega».  (Sublinhados nossos).

Edição «Livros do Brasil». 1)«A ilustre Casa de Ramires», Cap. IV/97, X/296.  | 2) «Os Maias», Cap. VIII/225. | 3) «Os Maias», Cap. VIII/230. | 4) «Os Maias», Cap. IV/107. | 5) «O Primo Basílio», Cap. V/163. | 6) «O Primo Basílio», Cap. V/165. | 7) «O Primo Basílio», Cap. XI/326. | 8) «O Crime do Padre Amaro», Cap. XIV/270. | 9) «Tragédia da Rua das Flores», Cap. III/58. |10) «Tragédia da Rua das Flores», Cap. IX/205. | 11) «Tragédia da Rua das Flores», Cap. IX/206. | 12) «Tragédia da Rua das Flores», Cap. XI/210. | 13) «Tragédia da Rua das Flores», Cap. XI/265. | 14) «A Capital», Cap. 1/59. |15) «A Capital, Cap. II/102. | 16) «A Capital», Cap. III/127 | 17) «A Capital», Cap. III/129. | 18) «A Capital», Cap. III/140.  | 19) «A Capital», Cap. IV/165. | 20) «A Capital», Cap. IV/172.  |21) «A Capital», Cap. V/203 |22) «A Capital», Cap. VI/231. |23) «A Capital», Cap. VI/232. |24) «A Capital», Cap. VI/237. |25) «A Capital», Cap. VII/259. |26) «A Capital», Cap. VII/277. | 27) «A Capital», Cap. VII/278. | 28) «A Capital», Cap. VII/280. |29) «A Capital». Cap. VIII/295 | 30) «A Capital», Cap. VIII/301 |31) «A Capital», Cap. VIII/316 |   32) «A Capital», Cap. VIII/323. | 33) «A Capital» Cap. IX/336; | 34) «A Capital», IX/345. | 35) «O Primo Basílio», Cap. IV/116. | 36) «O Mulato», Pág. 63 e 64. |37) «O Mulato», Pág. 68 e 69. | 38) «O Mulato». Pág. 76 e77. | 39) «O Mulato», Pág. 125/131.! 40) O Mulato», Pág. 143. |41) «O Mulato», Pág. 149 | 42) «O Mulato» Pág. 246».
  

Ora, terá sido nesta envolvência pândega, neste «tronco pândego» - figura metáfora - que entronca a pandegazinha que habita no «Almanaque do Camponez de 1918». Eça de Queiroz, Aluísio de Azevedo e Manuel Joaquim Andrade, cada um à sua medida, consignaram na escrita aspetos da vida social que a todos envolvia.   A pândega é uma festa muito animada de comes e bebes. Aliás, ainda hoje no «Mundo do Sítio» se enfatiza o carnaval como uma animada pândega! (Link 5).  



6). Desdobramento do dia de compadres. 
    Em desconforto nos compadres a «rapaziada» incorporou-se na pandegaria

Ao longo do século as motivações para a instalação do «dia de amigos» podem ter sido as mais diversas. Porém, no início, temos que o «dia de amigos» terá resultado do desdobramento do dia de compadres. Durante a monarquia absoluta e igreja católica ultramontana, no «dia de compadres», em rigor, só caberiam compadres estritos (via batismo ou matrimónio (afinidade). Porém, no liberalismo, compadres mais liberais terão convidado alguns amigos para o bródio caseiro. Só que isso tinha inconvenientes:  os amigos sempre teriam o estatuto de convidados e como tal se haviam de conter; os amigos de uns nem sempre são amigos de outros, o que pode ocasionar desconforto; sendo ainda que à saída alguns amigos carregavam a obrigação social de retribuir. Ora terá sido para obviar a tais constrangimentos que «a rapaziada» se autonomizou dos compadres, criou a sua própria pandegazinha que posicionou numa quinta-feira anterior. E assim terá nascido a «quinta-feira de amigos» ou «dia de amigos». E, por analogia/simpatia a «quinta-feira de amigas» ou «dia de amigas». Realmente, o carnaval é tempo de alegria, diversão, libertação, alguns excessos até, livre de constrangimentos. E de preferência num espaço de acesso público, ainda que reservado, onde cada um paga a sua parte, nada ficando a dever a outrem.  Seja no «Bragança», no «Universal», na «taberna do Gago» em Vila Clara, ou na «taberna do tio Osório» em Leiria.  Desta liberdade a grande expansão alcançada pelos amigos. Enquanto o caseiro «dia de compadres» foi decaindo. E hoje está quase convertido numa «segunda volta» do dia de amigos, «compadres» de ocasião. Na essência do «dia de amigos» também está a convicção mútua de que «Um amigo fiel é um bálsamo de vida». E que o «dia de amigos» é a festa da amizade do grupo. Como um aniversário. Por isso se cultiva!   

Espaço. Face a centenária tradição, o dia de amigos é tido como uma originalidade açoriana. São conceitos distintos. Centenária é de certeza, documentada desde 1918. Já quanto à criação (desdobramento ou ato equivalente) afigura-se tarefa não fácil de conferir. No continente também houve lugares onde se festejaram as mesmas quatro quintas-feiras.  Agora o que se poderá dizer é que a conhecida envolvência dos Açores (desde 1829) nas lutas liberais e, depois, essa força mítica que impulsionou a tradição até ao centenário são valores compatíveis com uma originalidade açoriana.  



7). Blogue «Animus Semper» | Blogue «Vilar Maior» 

Nas obras de Eça de Queiroz o conceito de «rapaziada» é de uso recorrente e intenso, mormente in «A Capital». Também os conceitos de «rapazes» e «amigos» andam sempre lado a lado. Um coloquial, outro mais terno, mas as pessoas são as mesmas. Exemplo: O «Conselheiro Acácio», aquando da condecoração («Grau de Cavaleiro da Ordem de Sant’Iago») ofereceu um jantar a cinco convidados (Jorge, Julião, Sebastião, Coutinho, Saavedra), que qualificou de «jantar de rapazes», mas que repetidamente trata de «meus amigos», (1878). |  O jurista Joaquim Nogueira, nascido em 1933 (86 anos), relata no blogue «Animus Semper», que na sua infância / juventude e na sua freguesia de Várzea dos Cavaleiros – Sertã, também era costume a celebração das quatro quintas-feiras: «quinta-feira de rapazes, quinta-feira de raparigas, quinta-feira de compadres e quinta-feira de comadres». (Link 6).  Celebrações simultâneas com as açorianas. As mesmas datas, quiçá as mesmas raízes.  Acontece que os Açores preservaram estas tradições, como coisa sua, ao longo do século. Com o «Almanaque do Camponez» ano a ano, através de quatro gerações, a manter sempre viva a chama da Amizade! Um tesouro! Enquanto no continente, com a deslocação das gentes dos campos para as cidades, as tradições, onde as havia (em data certa) foram caindo em desuso.  E não se encontra hoje uma «folha» que as tivesse registado para memória futura! Ainda assim, há indicadores de que as pândegas para homens (como no dia de amigos) e piqueniques para mulheres (como no dia de amigas) as houve quando circunstâncias da vida o permitiam. Caso de Vilar Maior / Sabugal, como relata e documenta o Prof. Júlio Marques no blogue «Vilar Maior, minha terra, minha gente». (Link 7).  


8). As cancanistas francesas   

Nos últimos anos nos Açores, em alguns lugares das celebrações, quer de amigos, quer de amigas, a animação da festa passou a incluir shows de «striptease». | Também já antes de 1900, por ocasião do entrudo, cancanistas francesas saracoteavam no Casino Lisbonense, perante a sôfrega curiosidade burguesa. (Neste link uma aula e alguma história da dança: link 8).  Outro motivo de carnaval nas ruas do Chiado era o «enfarinhamento pândego» dos transeuntes.  Aplicação presente na generalidade do país e também em Angra do Heroísmo e Várzea dos Cavaleiros. O edifício do Casino Lisbonense ainda hoje existe ao Chiado, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, próximo do Teatro da Trindade. Aqui também tiveram lugar as «Conferências Democráticas do Casino» (1871), coordenadas por Antero de Quental.    


9). Dia de Amigas.    

As primeiras mulheres que saíram de «casa» para o «campo», rumo à emancipação, viveram também no último quartel do sec. XIX. Casos de D. Antónia Adelaide Ferreira, «Ferreirinha», (1811/1896), empresária do Douro, produtora e exportadora de vinho do Porto; Guiomar Torresão, (1844/1898), escritora, tradutora, ativista feminina; Rosa Damasceno, (1845/1904), atriz de teatro, com uma digressão ao Brasil em 1892; Maria Amália Vaz de Carvalho, (1847/1921), escritora, poetisa, ativista feminista, a primeira mulher a entrar na Academia das Ciências de Lisboa;   Beatriz Angelo, (1878/1911), médica feminista, republicana, a primeira mulher a votar em Portugal (1911).  Mas eram mulheres oriundas das classes altas e intermédias. Nas classes populares a emancipação foi mais lenta e demorada.  A única pândega para toda a família ocorreu num sítio (quinta) em São Luis do Maranhão. Em Portugal as «pandegas» eram coisa de homens. E quando entravam mulheres eram sílfides acompanhantes.  Durante muitos anos o «dia de amigas» terá sido mera data de calendário.  Muito diferente da plenitude atingida neste sec. XXI.  Mérito de Amigas!



10). Conclusão:  

As celebrações do «dia de amigos» e do «dia de amigas» nos Açores, nas comunidades da emigração e núcleos continentais constituem ramificações vivas de um tronco pandego comum, com raízes em todo o território nacional desde o último quartel do séc. XIX e a convicção de que «Um amigo fiel é um bálsamo de vida». 



Francisco H. Neves

1.      Dia de Amigos
2.      Dia de Amigas
4.      1300 mulheres 
5.      Mundo do Sítio 
6.      Animus Semper 
7.      Vilar Maior
8.      Can-Can  
9.      O Mulato 






in O RIBEIRA DE PERA  edição impressa de 31/12/2019