quinta-feira, 8 de julho de 2021

Serra da Lousã. Coentral. Aqui ganhamos todos!

                        

1467 

A sentença de D. Afonso V sobre os montados na Serra da Lousã

Lousã ganha - Pastores perdem 




1||Causa. No dia 16 de maio de 1467 em Lisboa e no Tribunal da Corte de D. Afonso V «O Africano» (reinado 1438-1481)1 foi proferida sentença num recurso de apelação interposto da decisão dos juízes da Lousã, num processo cível em que eram autores (AA) o «Concelho» da Lousã e em que eram réus (RR) cinco casais de pastores (rectius proprietários dos rebanhos) dois dos Coentrais, dois de Pera e um da Ervideira, todos do termo do Pedrógão.

O texto encontra-se publicado na Monografia do Concelho de Castanheira de Pera e on line Google vg: Câmara Municipal Lousã - documento PDF 12985972 – Yumpu.

A questão teve a ver com pastagens nos montados da serra da Lousã.

Durante muitas dezenas de anos, sucessivamente, bisavós, avós, pais, sempre os pastores dos Coentrais, Pera e Ervideira pastorearam livremente os seus rebanhos pelos montados da serra da Lousã.

Indiferentes a uma linha divisória existente no alto da serra, sensivelmente igual à de hoje, definida no foral de Pedrógão de 1206 pela «estrada que conduz a Santarém».

Do lado de lá, a poente, o termo da Lousã.

Do lado de cá, a nascente, o termo do Pedrógão. 2

Os pastores moravam e tinham todas as suas propriedades móveis e imóveis, herdadas ou adquiridas nos Coentrais, Pera e Ervideira, no termo do Pedrógão, de cujo concelho eram vizinhos.

Os montados «da serra do Trevim e da Horta até à Cruz de Espinho» situavam-se no termo da Lousã, cujo foral data de 1151.

Entretanto as ordenações vão evoluindo, provavelmente os rebanhos crescendo, até que em data imprecisa, mas que obviamente se situa antes da sentença real, o concelho da Lousã, pondo fim à tolerância, deliberou notificar os pastores para, em alternativa: retirarem o gado dos montados da «serra do Trevim – Horta – Cruz de Espinho» para o termo do Pedrógão ou constituir avenças.  Retirar ou avençar.

Citados para responder à pretensão, compareceram todos (AA e RR) perante os juízes da Lousã. Houve conferência, exposição de motivos e razões. Sem acordo. Então os juízes decidiram logo não haver os pastores por vizinhos, multar os seus gados «ou (que) fizessem avenças». Em síntese: retirar ou avençar.  3

Inconformados os pastores interpuseram recurso de apelação para o Rei.

O recurso foi recebido no Tribunal da Corte pelo sobrejuiz que ordenou a formalização do processo com o libelo dos AA, contestação dos RR, produção de prova, inquirições, alegações de direito e por fim o processo é concluso para decisão.

E, decidindo, o rei D. Afonso V, pelo Tribunal da Corte, sentencia:  

·        Não haver os pastores por «vizinhos» da Lousã;

·        Proibi-los de montar com os seus gados o termo da Lousã;

·        Sob pena de multa de X reais por cabeça (especificado);

·        Condená-los nas custas de parte a favor da Lousã em 1066 reais;

·        E nas custas do processo a contar;

·        Mandatar os juízes da Lousã para lhes penhorar bens moveis e se não bastar vender a raiz.

·        Introduzir nas avenças o princípio da equidade. 

Perante isto é óbvio que os pastores perderam a causa. Jogaram tudo na usucapião - posse do uso e fruição daqueles montados durante cerca de cem anos, sem contradita alguma - mas a exceção improcedeu, porque seus pais, avós e bisavós também não tinham o estatuto de vizinhos da Lousã, para o deixar em herança.  E a jurisdição é um direito público que não se adquire por usucapião. A usucapião de um logradouro comum podia funcionar, mas dentro da mesma jurisdição. Na «Carta de Sentença» endereçada aos juízes da Lousã o tribunal real é claro logo a abrir a decisão: «acordámos que é bem julgado por vós em não haverdes os réus por vizinhos…».  


2|Montádigo. Esta questão dos «vizinhos» continha à época fundada motivação. Ter-se-á tornado incómodo ao «concilium» da Lousã, sem receber montádigo, ver pastores criar gado em montados seus, sob sua jurisdição e depois irem pagar impostos ao concelho de Pedrógão. Que não só ao concelho, também a dízima ao clero e os tributos ao «senhor». No regime senhorial os forais reservavam parte do território para fruição comum dos seus vizinhos (pastagens, lenhas, águas, matos). Donde os termos da Lousã para os vizinhos da Lousã; os termos do Pedrógão para os vizinhos do Pedrógão. Os pastores não vizinhos, como nos casos de transumância e neste agora, estavam sujeitos ao imposto de montádigo a pagar ao concelho ou ao «senhor»,4 conforme o caso. E aqui o cerne da questão das avenças. No regime senhorial o estatuto dos vizinhos não estava na proximidade, mas na titularidade de interesses comuns. Tinham o estatuto político de vizinhos todos os homens livres moradores na área do mesmo foral, (vg agricultores, pastores, mesteirais, almocreves). Cada foral tinha os seus vizinhos.5 Algo equivalente aos munícipes ou eleitores de hoje.  

 

3|Equidade. Como se alcança do relatório da sentença real, a via das avenças esteve sempre aberta do lado do «concelho» da Lousã. E aberta continuou mandando, porém, o tribunal real: «aos autores que com temperança façam suas avenças com os réus quando lhes licença derem para montar e não os queiram asperamente tratar acerca das suas avenças». Isto é, quando «se acordem acerca do dito montado e pasto».

O mandado real não obriga alguém a fazer avenças. Apenas introduz no negócio o princípio jurídico da equidade, decerto atento a que no regime senhorial camponeses e pastores já viviam debaixo duma teia de impostos, rendas e tributos. E prevenindo eventual tentativa de revanche negocial. Ignora-se o que depois se passou mas, perante a disponibilidade da Lousã, a iniciativa para avençar ou não avençar continuara do lado dos pastores.  

 

4|Patrocínio. No tribunal da corte os procuradores das partes analisaram as provas produzidas e alegaram de direito. Houve juristas (advogados) no processo. Quem terá patrocinado a defesa dos pastores?  Só conhecendo o processo se poderia saber. Mas é de admitir ter sido alguém com interesse direto na causa. Ou o «concelho» ou o «senhor» de Pedrógão, porque diminuindo a criação de gado, poderiam diminuir os impostos e tributos a pagar. Nas questões comuns era um «senhor» que mediatizava os seus súbditos com a corte.

 

5|Feito.  No séc. XX celebrou-se a temperança real e dos pastores o feito. Porventura nem sempre coincidente do Séc. XV o ânimo dos pastores resultante do feito.

Francisco H. Neves

                                              _____________                                                                

Notas de fim:


1| Tabeliães. Tempo em que todo o reino já estava dotado de tabeliães. Oficiais alfabetizados nomeados pelo rei, em cuja chancelaria régia prestavam provas, juramento e tomavam posse. A sua função base era lavrar as escrituras privadas no paço dos tabeliães. Mas serviam também nas audiências dos juízes do concelho, lavrando as atas e transcrevendo as decisões proferidas oralmente. Das sentenças o tabelião passava «carta de sentença»; ou «carta de razões» havendo recurso. No caso dos pastores o tabelião da Lousã passou «carta de razões». Outra importante função dos tabeliães era dar publicidade às leis. Nesse tempo ainda não existia jornal oficial, nem imprensa. Tudo manuscrito. Os originais das Leis eram depositados na Chancelaria Régia, donde se extraiam cópias.  Eram os tabeliães que, por todo o reino, as registavam nos livros e as liam em público, algumas ou muitas vezes. Tempo em que o cronista Fernão Lopes (1380-1460), que também fora tabelião, se aposenta do cargo de guarda-mor da Torre do Tombo (1454). E para lhe suceder é nomeado Gomes Eanes de Zurara (1410-1474). Ambos agraciados por D. Afonso V.)  


2| Termo. O conceito de termo pode ser tomado em dois sentidos. Em sentido formal é a linha divisória em redor do território (perímetro) e que corresponde hoje ao limite do concelho. Em sentido substancial abrangia parte do próprio território. As povoações que ficavam mais próximas da linha divisória eram povoações dos termos. Assim, as povoações dos Coentrais, Castanheira, Vila Facaia e Graça eram povoações dos termos do Pedrógão. 


3|Juizes. Os juízes concelhios eram eleitos pelos vizinhos dentre si. O porteiro do município é que citava pessoalmente os demandados. (Porteiro no sentido de portador dos mandados). Ninguém sabia ler. A decisão destes juízes era proferida oralmente. O tabelião é que lavrava as actas, escrevia e lia a decisão tomada. E organizava a «Carta de Razões», no caso de recurso. «Apelação» era o ato de recorrer, «Agravo» a motivação escrita). 


4| «Senhor». Num trabalho académico denominado «Entre Zêzere e Tejo propriedade e povoamento sec. XII-XIV», disponível on line, é referido o caso de troca de vilas, em que a um «senhor» na Sobreira Formosa «ficou reservado o direito sobre maninhos, montados e locais ermos, ainda que o acordo garantisse aos moradores da vila e termo o acesso a esses espaços», (pag.190).  Isto permitia-lhe cobrar montádigo a não vizinhos e a negociar a todo o tempo o seu direito. |Outros pontos tocantes neste trabalho académico: Foral de Pedro Afonso, (34, 76). Ponte romana do Cabril, (29, 34, 173, 278, 285, 319). Veados e javalis estragam (239, 260). Sinos e adro da igreja, (293). Jantar do bispo (160).  Montádigo (135, 205, 250/253). Tabeliães (150). Conceito medieval de «novamente» (318).


5| Vizinhos. O instituto político dos vizinhos medievais já vem de longe.  Remonta a| Às assembleias de vizinhos, «conventus publicus vicinorum» do tempo dos Visigodos, quando os nativos rurais se reuniam para tratar de assuntos vicinais, dentro do terço das piores terras que lhes deixaram (sortes gothicae et tertia Romanorum). b| Às assembleias de vizinhos no tempo dos Mouros, quando os Visigodos desertaram e o povo emerge como classe social: hortelãos, mercadores, mesteirais todos exercem livremente o seu mister, sem «senhor» por cima, mas em que nas aldeias e vilas havia assuntos comuns a tratar (vg. regadio, cereais, justiça, segurança). Para discutir e deliberar reuniam-se em assembleia ao ar livre em «conventus publicus vicinorum». C| Assembleias de vizinhos que se mantiveram nos forais políticos do começo da nacionalidade.  Os Visigodos voltam na «reconquista», tomam de presúria todas as terras, que dividem entre si.  É então que um «senhor», nobre ou eclesiástico (a troco de honras, rendas, tributos e serviços) concede foral (sede de concelho) a uma povoação aberta, murada ou acastelada. Têm o estatuto político de vizinhos todos os homens livres moradores na área do foral. Para tratar de assuntos comuns reúnem-se em «concilium» (assembleia) e daí o termo «concelho» de hoje. Primeiro no adro das igrejas ou na praça pública, depois dentro de uma sala ou «camara» e daí o conceito «Câmara» de hoje. (Ao lado dos «forais políticos» houve «forais agrários» (enfiteuse)). fn

 


(Texto in  O RIBEIRA DE PERA  edição impressa de 30 de Junho de 2021)