quarta-feira, 26 de outubro de 2016



Crónica da Fraga





CASTANHEIRA DE PERA NÃO TEVE FORAL NEM
ESTÁ NA DOAÇÃO DA «HERDADE DE PEDRÓGÃO» DE 1135





Na pesquisa «Google» sobre Castanheira de Pera encontram-se alguns sítios, um deles de referência, contendo esta informação:  

«As origens da vila remontam a 1135 e em 1206 D. Pedro Afonso, filho bastardo de D. Afonso Henriques, concedeu-lhe o foral, que foi renovado por D. Sancho I em 1217».   

Com o devido respeito, trata-se de uma informação manifestamente deslocada.Da apropriação duma factualidade histórica pertencente à vizinha vila de Pedrógão Grande, que não à vila de Castanheira de Pera.
Para situar o caso, recuperemos breves ideias dos primórdios da nacionalidade. 

Romanos. Seis séculos. Deles herdámos, além do mais, a língua (latim), as leis (direito romano), o cristianismo e uma classe social erudita e culta O CLERO.

Visigodos. Germânicos. Romanizados. Três séculos. Deles herdámos a NOBREZA. Classe militar. E proprietária das terras, mas que não as trabalha. São os servos que o fazem para si. Tem-se por seus «senhores». 

Mouros. Chegam em 711 via Gibraltar. Islâmicos. Vencem a nobreza, que deserta toda. Os servos continuam a trabalhar a terra, mas agora como donos do produto do seu trabalho. E para tratar de assuntos comuns (vizinhos) reúnem-se em assembleia (conventus publicus vicinorum). E assim emerge o POVO como classe social.

Visigodos outra vez.
A partir de 722 seguem-se séculos ditos de «reconquista cristã». Que, a final de contas foi a reacção dos Visigodos e seus descendentes, entretanto, reorganizados nas Astúrias (Pelágio), reforçados com outros visigodos e godos vindos da Europa, entre eles os nossos “conhecidos” D. Henrique e D. Raimundo, a que se vão juntando ainda as ordens ditas militares, religiosas e cruzados.
Começam por fustigar e afastar os Mouros das Astúrias.
Segue-se a Galiza, Leão, Douro…
A luta agora era sem quartel. Castelos e vilas incendiados. Devastações. Fio de espada. Já em território português a peleja durou cinco séculos, com avanços e recuos mútuos. Linha do Douro, Linha do Mondego, Linha do Tejo, Algarve, (1249).
Sendo que, à medida que os visigodos avançam: «Todas as terras ermas ou tomadas aos Muçulmanos por conquista eram consideradas sem dono (res nullius) e portanto susceptíveis de ocupação ou presúria».
Mas é claro ocupação e presúria por Visigodos. Elite militar em que todos se têm por nobres: reis, príncipes, condes, fidalgos, infanções.
Classe que quer reaver as terras, com tudo o que está lá dentro. Reparti-las entre si. Acabar com o «estatuto dos vizinhos». E remeter os libertinos (descendentes dos antigos servos) à primitiva servidão. Em suma restabelecer a NOBREZA.
Coimbra é tomada a retomada sucessivamente: 713 (Mouros), 868 (Visigodos), 987 (Mouros) e 1064 Visigodos em definitivo.
D. Sisnando, Conde D. Henrique, D. Tereza, D. Afonso Henriques…
E assim se chega a um período de tempo entre 1128 e 1138, com a fronteira militar relativamente estabilizada na linha do Mondego, em que D. Afonso Henriques, ainda príncipe, «recompensa os seus mais dilectos cavaleiros, fazendo doações de casais e herdades…».
E é neste contexto que em 1135 surge a doação da «herdade de Pedrógão» aos nobres Uzberto, Mónio Martins e Fernando Martins. 

Herdade de Pedrógão.
Sobre tal doação existem trabalhos de conceituados autores publicados, além do mais, nestes sítios: 
a) «Monografia do concelho de Castanheira de Pera» (Livro);
b) «Mosteiros Cistercienses. Separata». (Infra site 1); 
c) «Revista Portuguesa Arqueologia» (Infra site 2).
Nesse tempo (1135) ainda se falava e escrevia latim. (Só em 1296 (D. Dinis) é que «a chancelaria régia adopta a língua vulgar»).
No texto latino a «herdade de Pedrógão» está assim delimitada:

 «Habet enim terminos per montem qui vocatur Signum Salomon et inde per cimalias de Alvares ac deinde per cimalias de Sonieir et inde per cimalias Ameoso ac deinceps per cimalias de Squalos et inde per cimalias de Salzeda et per cimalias de Nadavi ac deinde ad monasterium de Algia quomodo concludit Algia cum Unzezar et inde unde primus incoavit».

Isto é: «Tem os seguintes limites: pelo monte que hoje chamam Signo Saimão, e pela cumeada de Alvares, e pelas de Sonieir, de Amioso, de Escalos, de Salzedas e de Ana de Avis; daí vai ao mosteiro de Alge, desce pela ribeira do mesmo nome até à confluência com o rio Zêzere e vai por este até ao ponto onde começou».
Sendo que: «Amioso, Escalos, Salzedas (ou Sarzedas) e Ana de Avis são topónimos que se mantêm». (Infra site 2).
Conhecida assim a delimitação da herdade no papel, vejamos agora como ela ficaria no terreno (1135), depois do trabalho do engenheiro agrimensor. Em execução do declarado no documento, o agrimensor fixaria uma ponta da sua cadeia no rio Zêzere, próximo de Pedrógão Pequeno e, partindo daí, desenrolaria e fixaria o cabo, sucessivamente, na cumeada de Alvares, na cumeada de Sonieir, na cumeada de Amioso, na cumeada de Escalos, na cumeada de Sarzedas, na cumeada de Aldeia de Ana de Avis, no mosteiro da ribeira de Alge, na foz da ribeira de Alge no rio Zêzere e, por fim, Zêzere acima, até ao ponto onde começou (Pedrógão Pequeno).
Com assim ficando definido, nos seus contornos, todo o perímetro da propriedade rústica denominada «herdade de Pedrógão».
Donde uma importante conclusão a extrair ser esta: nenhuma parcela da área do actual concelho de Castanheira de Pera está contida no perímetro da «herdade de Pedrógão». As terras da Ribeira de Pera ficaram de fora da doação. Apenas são confinantes. E certamente não foi por acaso, nem por falta de topónimos antigos (Trevim, Altar do Trevim, Selada de Pera, Ribeira de Pera). O caso afigura-se outro. É que estando em causa a defesa da linha do Zêzere - que com o Castelo de Leiria (1135) formaria uma linha avançada da defesa de Coimbra - não interessaria tanto povoar as terras da Ribeira de Pera. Pelo contrário, importaria até deslocar, daqui para lá, alguns casais que porventura por aqui houvesse.

A questão do Mosteiro.
Como se vê do texto latino, a «herdade de Pedrógão» confinava com um monasterium, cuja localização no terreno ainda hoje se discute. 
Mas consta que este tipo de mosteiros foi coisa trivial no séc. XII. Com o seu auge entre 1130 e 1150 – com as tomadas de Santarém e Lisboa (1147) de permeio. Construídos em locais isolados, no abrigo das montanhas ou no recosto dos montes. No meio de vegetação bravia. Nas franjas de lugares em vias de povoamento. Junto dum curso de água. Perto de estradas ou caminhos, permitindo as comunicações. Muitos consistiam em pequenas ermidas, com «mui poucos monges ou talvez um só». Houve mosteiros fundados e coutados por D. Afonso Henriques. Outros criados por nobres. A «reconquista cristã» foi um movimento militar e religioso, articulado e cooperante. «Nos locais mais sujeitos aos ataques inimigos até os frades não são dispensados de servir militarmente». (Cf. Grande Enciclopédia PB, vol. 17/968).
Sendo assim é de crer que o mosteiro do «Algia» se tratava duma pequena ermida, situada algures entre Aldeia de Ana de Avis e a foz do Alge, num morro sobranceiro em que, para além do ascetismo (ou antes dele), se avistava a linha do Zêzere/Foz do Alge, de modo a detectar-se qualquer movimento suspeito.
Já o que parece não fazer sentido seria o agrimensor desenrolar o cabo a partir de Ana de Avis até à região de Campelo, («Terras da Ribeira de Alji»), porque nesse tempo (1135), em que ainda se falava e escrevia latim, «Algia» significava «Ribeira Fria» (do verbo latino «algeo», ter frio), sendo nesse sentido que a ribeira era tida e conhecida. (Infra sites 3 e 4). Depois porque não seria certamente daí que se vigiava o Zêzere/Foz do Alge. E Campelo passou a foro de Miranda no ano seguinte (1136).

Foral de Alpreada.
Não muito longe daqui, passa-se algo semelhante com outro mosteiro que também hoje (2016) não existe, nem aliás vestígios dele. Trata-se do monasterium referido no «Foral de Alpreada de 1202». Sendo que, de estudos recentes, resultam três pontos comuns com o mosteiro da herdade de Pedrógão: também está na delimitação; também na fronteira sul e, também perto da foz de uma ribeira - a ribeira de Lardosa no rio Ocresa. (Infra site 5).
O que indicia a mesma dupla função: ascetismo e atalaia (vigia).

Reversão da herdade.
Conceituados autores enfatuam a dimensão da herdade de Pedrógão dizendo que que ela «… ia da serra da Lousã ao Zêzere….». Bem, dito isto assim é muito vago, visto que a serra da Lousã compreende montanhas pelo menos de cinco concelhos: Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Miranda do Corvo, Lousã e Góis. O agrimensor ficaria perplexo se assim tivesse de trabalhar. Mas o ênfase já se entende no sentido de que era uma área muito grande para assegurar a sua defesa, face as terríveis invasões almóadas (1170-1184), com ocupação e destruição da vila de Figueiró dos Vinhos (1180). É que a doação da herdade aos fidalgos fora feita com encargos, «…pro seruicio quod michi fecistis et facietis », isto é, «pelo serviço que me fizestes e fareis». Nestas circunstâncias, é provável que os fidalgos tenham restituído a herdade à Coroa. Seja como for, D. Sancho I doou-a depois a D. Pedro Afonso que, por sua vez, dela conferiu forais a Arega (1201), Figueiró dos Vinhos (1204) e Pedrógão Grande (1206).
E por fim uma curiosidade (arriscada): o donatário Mónio Martins terá algo a ver com Mónio Martins, alcaide de Pinhel? E o donatário Fernando Martins terá algo a ver com Fernando Martins, Bispo do Porto (1176/1185)? 

                                                                            ***

Em síntese:
1.     A vila de Castanheira de Pera não teve origem em 1135.
2.     A «herdade de Pedrógão» não abrangia as terras da Ribeira de Pera.
3.     O Mosteiro do «Algia» teria também função de atalaia (vigia).
4.     E, já agora: em 1217 quem reinava era D. Afonso II, (1185-1223).
5.     Quanto ao «não foral» da Castanheira, num próximo número.                                                                                                                                                                                             

2.  Revista
4.  BNP
5.  Alpreada 


 Francisco H. Neves


                                                                                                 

(Texto publicado antes no  O RIBEIRA DE PERA  onde se encontram ativos os links)