Os acordos ortográficos e o topónimo «Castanheira de Pera»
Interpretação mecânica no AO 1945 aplica o (^) no elemento «Pera»
Erro corrigido no AO 1990 e a Lei 203 retoma a plenitude
Lei da Fundação do Concelho de Castanheira de Pera |
1| Castanheira de Pera geminada.
Castanheira de Pera é um pequeno concelho, mas
peculiar em casos geminados. Com efeito: 1). Duas datas da
fundação do concelho, uma oficial (17 de junho) e outra oficiosa (4 de
julho). 2). Duas Câmaras em
exercício paralelo de funções (1923/1926), uma de direita e outra de esquerda,
cada uma se tendo por legítima, negando a legitimidade da outra. O caso subiu
ao Senado1. 3).
Dois dias «17 de junho», um do direito (17/6/1914) e outro do avesso
(17/6/2017). 4). Quiçá duas «Ribeiras de Pera». Ora aqui: «Selada
de Pera. Ribeira que nasce na freguesia do Coentral, concelho de Castanheira
de Pera, e é afluente da Ribeira de Pera»2. 5).
Duas teorias para a origem do genitivo «de Pera»: uma romântica («Horizontes da
Memória», RTP 2001) e outra geográfica (Selada de Pera ˃ Ribeira de Pera ˃ Castanheira
de Pera). 6). Duas formas de grafar o topónimo concelhio: «Castanheira
de Pera» (sem (^) e «Castanheira de Pêra» (com (^). Vamos abordar este último caso.
2| «Castanheira de Pera» sem (^).
A forma correta de escrever o topónimo
«Castanheira de Pera» sempre foi sem acento (^) no
elemento «Pera». Já vem da monarquia
constitucional, donde nos chegam mais de 400 registos no jornal oficial, todos
sem acento (^), (Link 1). A forma correta, de origem geológica (Selada
de Pera, terreno, petra, pedra, Pera) adquiriu força legal com a Lei nº
203 de 17/6/1914, lei do Congresso que criou o concelho de Castanheira
de Pera e fixou o topónimo da sede (caixa). A
pêra botânica (arvore, fruto, pêra) do Formulário Ortográfico de 1911,
(Base XXIX), ficara para trás, (Link 2). O
topónimo «Castanheira de Pera» (sem acento ^), ficou assim constituído e blindado
por lei. O acento (^) foi cravado no elemento «Pera» de forma mecânica pelo
AO de 1945.
3| Acordo ortográfico 1945 com (^) (Link 3).
Trabalho da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras,
reunidas em «Conferência Interacadémica», na cidade de Lisboa, no ano de 1945. O
«AO 1945» consta essencialmente de dois documentos:
Documento
nº 1 – Com
51 «conclusões» (na generalidade);
Documento
nº 2 – Com
51 «Bases Analíticas» (na especialidade);
Documentos aprovados
em Portugal pelo Decreto nº 35.228 de 8/12/1945. Nestes documentos faz-se
menção a dezenas de topónimos portugueses e brasileiros, mas nenhuma referência
aos topónimos «Castanheira de Pera» ou «Pera». Para entender como se chegou a
grafar o elemento «Pêra» terá o utente da língua portuguesa de percorrer três estações:
Primeira
estação. Conclusão III
(3) do documento 1, que dispõe na generalidade: «Não se consentem grafias
duplas ou facultativas. Cada palavra da língua portuguesa terá uma grafia
única. Não se consideram grafias duplas as variantes fonéticas e morfológicas
de uma mesma palavra». Ora, perante determinação tão firme, nomes próprios (maiúsculas) e nomes comuns
(minúsculas) ficam sujeitos à mesma regra de acentuação. A pera botânica
e a pera geológica grafando-se do mesmo modo, apesar de origem e sentido
diferentes. Uma força mecânica unificadora!
Segunda estação. Base Analítica XXII (22) do doc. nº 2 que trata da homografia. É aqui que nos aparece, diferenciando-se: «pêra substantivo, e pera, preposição arcaica, (mas o plural, peras, sem acento)». É claro que esta é uma pêra botânica, (letra minúscula, singular e plural). Nome comum. Porém, movida pela força mecânica vinda de trás ela transforma-se, para quem dela precisar, em «Pêra» antropónimo, topónimo ou outro nome próprio. E assim surgiu o (^) em «Castanheira de Pêra»!
Terceira estação. Base Analítica «L» (50) do documento 2. O utente tinha fundada esperança que a geologia da sua «Pera» se mostrasse aqui protegida pelo princípio dos direitos adquiridos. Porém, a norma reza assim: «Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume, adopte na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas, títulos que estejam inscritos em registo público». Perante isto a interpretação generalizada considera não caberem aqui os topónimos. E desta feita a «Pêra» saiu para o campo, onde se instalou por toda a parte… Paralelamente manteve-se no terreno a tradicional e geológica «Pera» …
4| O que se poderia ter feito. Interpretação extensiva. Portaria.
Aceita-se que a interpretação objetiva da
«Base L» não compreenda topónimos. Todavia, já os poderia
considerar numa interpretação extensiva, se conexionada com o §
42 do formulário ortográfico (1943) que a Delegação brasileira trouxe
à «Conferência» de Lisboa e que dispõe assim: «Os topónimos de
tradição histórica secular não sofrem alteração alguma na sua grafia, quando já
esteja consagrada pelo consenso diuturno dos brasileiros. Sirva de exemplo o
topónimo «Bahia», que conservará esta forma quando se aplicar em referência ao
estado e à cidade têm esse nome».
Os brasileiros cuidam da sua toponímia. E a «Bahia» conserva a sua grafia histórica. Com o acordo da Delegação Portuguesa. A conexão com o Formulário brasileiro está no preâmbulo do Decreto 35.228, diploma que deixava porta aberta a revisão ortográfica mediante portaria do Ministro da Educação Nacional. Então o que se poderia ter feito era organizar um processo e requerer ao MEN a manutenção do topónimo tradicional. Invocando para tanto, além da conexão, o uso consuetudinário sem acento (^) do elemento «Pera», documentado desde 1758. E ainda: que em 1914 a Lei 203 assumira essa tradição não seguindo a pera botânica do Formulário de 1911; e sobretudo que estavam aqui vigentes dois diplomas legais em conflito: Um (Lei 203) fixando «Castanheira de Pera» e outro (Decreto 35.228) grafando «Castanheira de Pêra». Resultando daí escrita dupla! Mas compreende-se que o «Poder local» não estava constitucionalizado como hoje. E possivelmente a Lei nº 203 de 17/6/1914 já estaria reservada em Arquivo.
5| Erro corrigido. Lei 203 plena.
O erro acabou corrigido no AO de 1990, via fonética, conforme ponto 9 da «Base IX», ficando a homografia a distinguir-se pelo contexto sintático. E com assim a Lei concelhia nº 203 de 1914 retomou a sua plenitude. Continuando a escrever-se «Pera» como é tradição secular. E se ao tempo passou o erro, agora é tempo de saudar o acerto!
Francisco H. Neves
PS.
A Lei nº 302 não se pode, nesta parte, considerar tacitamente revogada pelo Acordo Ortográfico de 1945, (ratio pelo Decreto nº 35.528), porque a partir do Artº 10º do Decreto nº 22.470 de 11/4/1933 a revogação teria de ser expressa.
1) Diário do Senado. Sessão nº 57 em 14/5/1926, páginas 7 a 20, (Link 6).
2) Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Volume 28/161.
2) AO de 1911
3) AO de 1945
4) § 42
5) AO de 1990
6) Duas Câmaras
7) Todos os Acordos (1911, 1945, 1990)
Texto in O RIBEIRA DE PERA edição impressa de 30/11/2020