sábado, 3 de março de 2018




AS FESTAS DO SENHOR NO ULTIMO DOMINGO DE AGOSTO

PATRIMONIO IMATERIAL DA VILA

 


Santíssimo.
Dentre as pessoas mais idosas, muitas se recordam das tradicionais «Festas do Senhor» na vila de Castanheira de Pera. Anualmente sempre no último domingo de Agosto. Missa solene concelebrada por três sacerdotes, sermão do púlpito da Igreja, procissão solene dentro da vila. Filarmónica Castanheirense. «Zés Pereiras». À noite arraial popular (folclore, variedades, fogo preso). A festa era patrocinada pelos «Irmãos do Santíssimo». Aquando do peditório todos contribuíam, pelo menos com um alqueire de milho em género ou valor equivalente. Em troca recebia-se dois foguetes. Sucede porém, que há cerca de três dezenas de anos, as Festas do Senhor interromperam-se. Motivação diversa, cansaço de mordomos, alguma sobreposição das festas concelhias do 4 de Julho, a Feira da Juventude em Agosto, a inércia da comunidade cristã da vila. Regressaram porém, em 2016 e anunciam-se para 2018. Vamos indagar do enquadramento jurídico da pausa na perspectiva do direito canónico. 


Direito Canónico.
Como qualquer pessoa (singular ou colectiva) também a Igreja Católica pode ser proprietária de coisas civis, casas, terrenos, vinhas, olivais, pinhais, geralmente provindos de doações pias. Estes bens temporais regem-se pelo Código Civil (CC) do respectivo Estado, (Cân. 197, Cân. 1259). Porém, já no tocante às coisas sagradas (templos e actos litúrgicos) há institutos (como o costume e a prescrição) com prazos privilegiados no Código de Direito Canónico (CDC). Já era assim no CDC 1917 e continua a ser assim no CDC 1983 (Cân. 26, Cân. 1270). Com uma diferença quantitativa: 40 anos no Código antigo e 30 anos no Código actual. O Código Civil é no Direito Canónico de aplicação subsidiária. 


Quarenta anos.
Não indagámos ao certo do início das «Festas do Senhor» na vila de Castanheira de Pera. Todavia, já na edição do jornal «O Castanheirense» de 15 de Setembro de 1937 se refere à Festa anual do «Santíssimo», realizada no «dia 29 do mês findo», como sendo «uma das melhores festas da terra». A este documento junta-se o depoimento das pessoas mais idosas da região, testemunhando que as «Festas do Senhor», (missa, procissão e arraial nocturno), sempre se realizaram na vila no último domingo de Agosto de cada ano. Reiteradamente, durante os anos trinta, quarenta, cinquenta, sessenta e setenta do século passado. Significa isto que perfazendo, nesse âmbito temporal, «quarenta anos contínuos e completos», a Comunidade Cristã da vila adquiriu, quer pela via do costume quer pela via da prescrição aquisitiva (usucapião), o direito ao último domingo de Agosto de cada ano para, dentro dele, celebrar as suas «Festas do Santíssimo». Consequentemente, uma vez adquirida a titularidade da data, com força equivalente a lei, as «Festas do Senhor» podem deixar de se realizar durante 10, 20, 30 ou mais anos, sem que daí resulte a perda do direito a retomá-las, posteriormente, na mesma data de calendário. E isto é assim porque, além do mais, a titularidade não caduca. E mesmo não se realizando (elemento objectivo), a comunidade cristã da vila mantém sempre a convicção (elemento subjectivo) de que esta é a data das «Festas do Senhor». E não aprecia que esta sua convicção seja perturbada.   

Trinta anos.
Mas prudência, porque isto pode deixar de ser assim em duas situações. 1) Ou perante um diploma diocesano em sentido diferente. 2) Ou se, entretanto, uma qualquer outra Comunidade Cristã da Paróquia tiver de boa-fé ocupado a data (do ultimo domingo de Agosto), para nela celebrar a sua Festa Religiosa (missa e procissão) e nela assim se mantiver durante «trinta anos contínuos e completos», (Cânones 26, 27, 198, 201 § 1º, 1270 CDC). Sendo que o relevante aqui não é o ano em que a Festa do Senhor para, mas o ano em que uma outra Comunidade Cristã começa, começo este que só se conta a partir de 27 de Novembro de 1983, data da entrada em vigor do novo CDC, (Art.º 297º nº1 CC). Devendo ainda esta Comunidade Cristã manter a sua festa contínua, isto é, sem interrupções, porque as interrupções inutilizam o tempo decorrido, começando o prazo a contar de novo (Art.º 326º CC). 


Ponderação.
As festas religiosas são pontos sensíveis nas Comunidades. Deixam transparência documental (actas, licenças religiosas e administrativas, programas, recibos, jornais). Em caso de dúvida temporal seria uma questão a ver, analisar, conferir. E, tudo ponderado, de duas, uma: ou uma outra Comunidade Cristã da Paróquia preenche uma série de «trinta anos contínuos e completos» e desta feita adquire o direito ao último domingo de Agosto, quer pela via do costume, quer pela via da prescrição aquisitiva (usucapião) e a vila cede a data; ou tais pressupostos não se verificam e então o direito à data permanece na titularidade da Comunidade Cristã da vila. E o tempo em que outras Comunidades Cristãs da Paróquia tenham, porventura, andado na «posse» da data, tem-se como um tempo de expressão da sua Fé, (consenso, harmonia, tolerância), expresso ou tácito conforme o que das actas conste, contudo sem potencialidade para atingir o direito. No demais há que ter em conta as «Orientações pastorais sobre festas religiosas, Diocese de Coimbra», (1). Mormente quanto à prestação de contas e entrega de saldos. Saldos obtidos sob jurisdição canónica não devem ter destino civil, (Cân. 1261º § 2º CDC).  
                

Património imaterial.
Situada no tempo, uma data de calendário é uma «coisa». Visto que se diz coisa «tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas», (Art.º 202º CC). Decerto coisa incorpórea, imaterial (Art.º 1.302º CC). Mas adequada para dentro dela materializar determinados actos. Por isso todos os dias se negoceiam estas «coisas», (data da escritura, data do casamento, data do congresso, data das eleições, data do jogo, data da festa, data da viagem e por aí adiante). Existem datas que se esgotam num acto e datas que se repetem por tempo indeterminado. Dentre estas os feriados nacionais, regionais e municipais. Aqui as respectivas comunidades têm estas datas como «coisa» sua, algo do seu património imaterial (histórico, politico, religioso). O mesmo principio valendo para os tradicionais dias festivos em templos das paróquias de cidades, vilas ou aldeias. Em que as comunidades cristãs locais participam e vivem activamente o dia da «sua» festa, a festa do «seu» padroeiro, a festa do «seu» lugar. «Coisas» afinal do seu património imaterial!

 Francisco H Neves 

(1)