segunda-feira, 24 de julho de 2017



A tragédia dos incêndios florestais 
Há décadas que a oficina do mundo rural encerrou
Batalhões de sapadores florestais precisam-se
Primeiro as pessoas. Depois a floresta






A oficina encerrou.
Durante séculos todos estes montes e vales da Serra da Lousã se constituíram em Serra dos Milhafres. Pastorícia. Cabras e ovelhas percorrendo montes e vales em busca de pasto. Grandes soutos de castanheiros. Olivais, vinhas, cerejeiras, figueiras, macieiras, pereiras, pessegueiros. Tudo cuidado. O mundo rural constituía então uma ampla oficina onde todos trabalhavam (homens, mulheres e crianças). Ferramentas: ancinhos, arados, carrinhos de mão, enxadas, foices, forquilhas, gadanhas, machados, navalhas de volta, pás, picaretas, podoas, sachos, serrotes, tesouras de podar. Desde cedo os rapazes calcorreavam os pinhais em busca de pinhas, galhos e tocos para as lareiras. Homens roçavam o mato nas serranias e os carreiros com as juntas de bois efectuavam o transporte, para fazer a cama aos animais (vacas, cabras, ovelhas, suínos, coelhos), donde depois se extraía o estrume para adubar as terras de cultura. Nateiros, courelas, leiras. Homens e mulheres plantavam, semeavam, regavam, cuidavam, recolhiam. Milheirais, couvais, nabais. Hortas (abóboras, alhos, cebolas, feijões, pepinos, pimentos, tomates). Tudo biológico. Dezenas de taramelas afugentavam a passarada. Dos pinheiros resineiros extraíam a resina. De permeio juntava-se caruma para padarias. Os donos sabiam de cor onde estavam os marcos. Toda esta gente patrulhava a floresta. Se surgia um foco de incêndio era logo dominado com um chamiço. Em Castanheira de Pera o quartel dos BV foi inaugurado em 1966. Dantes o “quartel” era um cubículo T0 na antiga praça da sardinha.

Porém, por meados do seculo passado (1950/1960) toda esta grande oficina avulsa se vai desactivando. Aparece o gás doméstico. As padarias electrificam-se. Os proprietários começam a proibir e multar o gado na sua floresta. Aparecem as placas “Entregue à GNR”. Acabam os rebanhos grandes e pequenos. A emigração sucede-se. A escolaridade tornou-se obrigatória e a GNR vai buscar os alunos faltosos. Vem o ciclo preparatório e depois o secundário. As pessoas vão envelhecendo e, sem forças, abandonam a agricultura. Fica tudo a mato e silvas. Alguns idosos, esforçados, ainda tentam manter uma pequena horta no quintal, ao pé da porta, onde até plantam alguns castanheiros. Debalde. Não tardou que varas de javalis e manadas de veados, descidos da Serra da Lousã (espécies cinegéticas), viessem destruir a horta e secar os castanheiros. Foi o despacho final. E assim se encerrou, nesta região, a secular oficina avulsa, do mundo rural, (algo avulsa, algo solidária). Agora todo o material combustível, em crescendo, fica por lá, no interior da floresta. As alfaias, umas levaram sumiço, outras enferrujaram e outras, recuperadas, servem de adorno em apartamentos citadinos. 



O Estado obriga.
A uma teia de obrigações. Exemplos. O Estado obriga o dono do automóvel à inspecção periódica do seu veículo; o cidadão paga, mas de IPO oficinas há muitas. O Estado obriga o dono do prédio urbano à inspecção periódica dos ascensores; o cidadão paga, mas há credenciadas oficinas de manutenção. O Estado obriga o cidadão a fazer seguros obrigatórios; o cidadão paga, mas oficinas há muitas (seguradoras). O Estado obriga o dono a levar o cão à vacina; o cidadão paga, mas há muitas oficinas onde o levar. O Estado obriga os proprietários à «gestão do combustível» (limpezas) das faixas de terreno, nos termos do DL 124/2006 de 28/6, (com alterações DL 15/2009 de 14/1, DL 17/2009 de 14/1, DL 114/2011 de 30/11 e DL 83/2014 de 23/5). Mas agora… o cidadão não tem oficina onde se dirigir. A oficina avulsa que havia no mundo rural, há anos que está encerrada. Fica a sensação que o legislador o olvidara.



Netos e avós.
E duvida-se que sejam agora os netos, alunos do secundário, das universidades e dos institutos, mestrandos e doutorandos a vir à terra fazer a limpeza das matas dos avós. Ou que sejam estes, quantas vezes já depositados em lares ou corcovados em casa, a ir de bengala desmatar e desramar o seu alqueive. Ou mesmo as famílias activas, quantas vezes a trabalhar em cidades distantes, senão mesmo bem longe na emigração. É claro que, para quem não cumpre, culmina-se coimas (multas), no mínimo de € 140. Pois é. Mas quantos pensionistas e idosos, de bengala na mão, chegam ao fim do mês já sem ter 140 €?  



Difícil aplicação.
Daí que DL 124/2006 de 28/6 se tenha mostrado de mui difícil execução, por todo o território (continental). É que, mesmo para quem pode pagar, não há oficinas. E depois é preciso tomar consciência que não basta limpar uma vez. Limpar a mata é como fazer a barba ou cortar o cabelo. Fica de novo em crescendo contínuo. Havendo espécies que carecem de limpeza duas e três vezes ao ano. E ninguém aguenta tal «imposto» sobre a sua faixa. Raro será o concelho onde a manutenção da metragem se mostre devidamente cumprida. No público e no privado. E se alguma personalidade pretender indagar ou se os senhores deputados o entenderem verificar, nem será preciso grande deslocação. Basta uma breve passagem por algumas áreas rurais de alguns concelhos vizinhos. 



Primeiro as pessoas. Nuclear.
Escuta-se com frequência a responsáveis políticos proclamar que primeiro estão as pessoas. Pois é. Mas o certo é que, diante do fogo, todos os anos se veem pessoas aflitas na defesa das suas vidas, das suas casas, dos seus haveres. E este ano ocorreu a tragédia.

«Primeiro as pessoas» significa, antes de mais, que as operações de limpeza por sapadores florestais, se deviam iniciar pelo núcleo de cada vila, pelo núcleo de cada aldeia, operando a limpeza do «combustível» aí existente em risco de faúlhas (ramos e árvores secas, ervados, matagais, silvados), não raro bem à vista no interior de vilas e aldeias, (Adequando-se o Art.º 191º CP). Seguidamente operando na legal faixa de «gestão de combustível» obrigatória, dos 50 metros em redor de edificações isoladas e na faixa dos 100 metros, em redor aglomerados populacionais (vilas e aldeias). Seguindo-se os 10 metros de cada lado das estradas. Tudo de tal modo que, perante qualquer incêndio vindo lá do interior da floresta, as pessoas, as suas casas e logradouros não corram perigo. Devendo todo este serviço considerar-se serviço público e como tal ser disponibilizado de graça, constituindo para as pessoas como algum retorno das elevadas taxas de IMI que pagam e da exorbitante tabela de emolumentos dos Registos e Notariado onde, não raro, o custo da escritura e registo ultrapassa o valor real do botaréu. Sendo ainda que se trata de um investimento. Gastar na prevenção e não na aflição. 



Corações.
Todavia, parece que pouco vem neste sentido. Ainda agora foi publicado o estatuto dos sapadores florestais (DL 8/2017 de 9 de Janeiro). E, salvo erro de interpretação, a sensação com que se fica é a de que a missão atribuída aos sapadores florestais é primeiro a floresta e depois a floresta. Para as pessoas fica a «sensibilização das populações para as normas». É muito pouco. Quer dizer, para a defesa da floresta (pinheiros, eucaliptos, fauna) o Estado disponibiliza trabalhadores especializados, formação profissional, equipamento adequado. Enquanto para a defesa das pessoas nas vilas e aldeias é ficarem estas e os proprietários das faixas em redor, entregues a si próprios, ainda que estes “sensibilizados” para a sujeição a coimas (multas). A desertificação adora. Ora, para inverter este quadro e conferir segurança às populações, afigura-se necessário a criação e instalação no terreno de um maior número de Equipas e Agrupamentos de sapadores – batalhões passe a metáfora - distribuídos por todo o país, de norte a sul, segundo as circunstâncias de cada município. Com a expressa missão primeira de operarem sempre a partir dos núcleos populacionais, irradiando depois lá para o interior da floresta (sectores público, privado e corporativo), conforme se achar determinado.

Para que, em síntese, os corações das pessoas se sintam mais aliviados!  

                                                                                                                                  Francisco H. Neves 


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 Texto nosso publicado no jornal O RIBEIRA DE PERA edição impressa de 16/7/2017